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SOUNDESIGN
Lucília Borges
A música e o design, ou antes sons e imagens, já não se distinguem como
duas potências isoladas ocupando campos distintos. O som, matéria-
prima da música, transita entre imagens que se transmutam em sons num
espaço que dá a entrever o vazio. Sons e imagens, como ondas sonoras e
luminosas que se entrelaçam, passam a ocupar ou antes a se entrecruzar
num espaço vibrátil, constituído da mesma matéria de que são feitos:
vibração, frequência ativa, movimento.
O vazio não é o contrário de cheio, está cheio de partículas vibráteis onde
tudo é matéria e produz vibração. Surge como um corpo com infinitas
possibilidades e se esvanece logo em seguida até perder todas as suas
propriedades, mas é todavia existente. É uma possibilidade não ocupada
pelo corpo mas passível de ser ocupada(1). “(...) Um vazio que não é um
nada, mas um virtual”(2) .
A “não-presença” do virtual não implica a sua inexistência pois “o virtual
tende a atualizar-se sem ter passado no entanto à concretização efetiva
ou formal”(3). O pensamento, a imaginação, a memória, um texto ou
imagem na rede, a música, uma conversa telefônica não possuem um
espaço fixo, demarcável mas reconhecemos a sua existência. “Quando
uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam,
eles se tornam ‘não-presentes’, se desterritorializam”(4). Nesse sentido o
design mudou de natureza e escapou ao seu lugar comum para se
desterritorializar em espaços virtuais como o espaço da música.
O conceito de virtual no design ou de um design virtual surgiu com a
tecnologia mas pode ser observado em outros momentos na história do
design à medida em que seus “objetos” atualizam forças que os
atravessam. O ciberespaço, espaço de relações em tempo real, e a
tecnologia, suporte ou ferramenta para simulações em duas, três e quatro
dimensões, ou seja, nova ferramenta de “projeto”, propiciam
virtualizações no design mas não são suas determinantes, uma vez que o
conceito de “realidade virtual” está ligado tanto ao ciberespaço (e
consequentemente às novas relações de vizinhança, distâncias e
fronteiras geográficas, relações pessoais, etc.) e às mídias de comunicação
virtuais (os computadores, por exemplo) quanto às virtualizações e
atualizações que ocorrem, tanto no design quanto na música,
independentemente da presença da tecnologia.
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Não se trata, portanto, de um design subordinado ao ciberespaço ou às
mídias digitais, mas um design que responde a eles de forma inventiva,
criativa e inovadora e que se vale deles para estabelecer novas relações
para além do “projeto”. A tecnologia colocou o designer em contato com
novas ferramentas de “projeto” que mudaram a sua própria natureza, ou
seja, projeto, processo e produto incorporaram novos conceitos. “Face a
uma tal mistura de natureza dinâmica, tudo é plena potencialidade, tudo
passa a ser virtualidade”(5).
O signo do design passou a ser da ordem do virtual, da diversidade e da
multiplicidade de relações entre todos os sentidos. E sendo “virtual” o
design não possui uma “forma”, nem um lugar fixo, o espaço das relações
é da ordem do vazio e não de lugar, “pois mesmo o vazio é uma sensação,
toda sensação se compõe com o vazio”(6) o que torna possível uma
aproximação entre a música e o design.
A música e o design hoje não apenas se “tocam” mas se fundem numa
“figura andrógina” sem que se possam distinguir as vizinhanças, lugares
ou bordas onde um começa e o outro termina (7).
“Não se trata, como se sabe, diante de semelhante mistura, de passagem
de um corpo dentro dos interstícios vazios de um outro, caso em que
haveria sempre continente e conteúdo. Mas sim da fusão íntima e em
todos os pontos dos dois corpos. A ação dos corpos.”(8)
Algumas palavras já nascem carregadas de sentido mesmo que não
tenham ainda desvelado-se ao “grande público”. Sentido latente. A esse
corpo mesclado, “compósito e misturado”(9), demos o nome de
soundesign como uma potência entre a música e o design. Uma potência
que não é uma coisa nem outra mas um entre os dois. Está na fronteira
ou é a própria fronteira entre a música e o design, entre som e imagem,
uma fronteira onde o contorno é imperceptível porque até o próprio
contorno é antes borrado ou rasgado para que um “sopro” lhe conceda a
vida. “(...) Onde e como distinguir o lugar da solda ou do corte, o sulco
onde a ligação se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam (...) o inerte e
o vivo (...)” (10)?
Não se trata, entretanto, de um “entre” como “meio” ou traço que separa
uma coisa e outra como se se passasse de um lugar a outro simplesmente
(“Isto seria assim se o meio se reduzisse a um ponto sem dimensão”[11]),
mas de um e(ntre) como potência “que os arrasta um e outro numa
evolução não paralela, numa fuga ou num fluxo em que já não se sabe
quem corre atrás de quem, nem para qual destino”(12). Ir de um domínio
a outro implica mudança de natureza, não apenas mudar de margem mas
abandonar qualquer domínio, sem no entanto, apagar por completo o
que se foi (“Esqueceu, obrigatoriamente, mas mesmo assim se
recorda”[13]).
O soundesign, múltiplo e universal (“aquilo que embora sendo único verte
em todos o sentidos”[14]), não está somente na fronteira entre a música
e o design mas na fronteira mesma da música e na fronteira do design,
em tudo o que escapa ao formalizado, ao programa, ao repetitivo. Está no
limite da forma, do processual, no que se transforma, nos espaços de
articulação dentro da própria música e nos espaços de relações do design,
“habitando as duas margens e vagando no meio”(15).
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