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num contexto de mentiras e terror, fortalecendo um agente coletivo
como um meio de se opor a um modelo de vida individualista,
contrapondo uma comunidade apoiadora de ações e interesses à primazia
do mercado”.
Nesta parte mostrei formas pelas quais a música, como um meio de
apresentação popular que absorve corpo e mente numa expressão
coletiva, tem o poder de transformar valores, ideologia e comportamento
vivido pela criação de uma “zona autônoma temporária”. Dificilmente a
música é apenas um som que é passivamente escutado, mas uma força
sônica que atua em corpos e mentes e cria seus próprios ritmos vitais:
ritmos que o poder reconhece e tenta monopolizar através de uma
incansável dominação do ruído societário. Mas, por causa de suas
propriedades únicas, a música pode ser empregada como um poderoso
dispositivo contra-hegemônico que vai além do pensamento, para a vida.
A música como um valor de uso socialmente organizado é uma ameaça à
máquina desejante individuada, voltada para o consumo, do capitalismo
avançado. Como expressão coletiva prazerosa, a prática da música
fornece importantes indícios do que Foucault descreve como a “arte de
viver contra todas as formas de fascismo” através da constante criação de
“des-individualização”, e como “a conexão do desejo à realidade (e não
seu retrocesso a formas de representação) [é] que possui força
revolucionária” (1992)
Ocupação Sônica
Nesta parte final, mostro como grupos subalternos têm usado a música
como arma que é capaz de atravessar paredes e mentes. Além do fato de
que a percussão pode reproduzir a linguagem, a territorialização através
do som demarca áreas de significação política ou cultural e tem
desempenhado um importante papel em atividades humanas tal como a
religião e a guerra. De tímpanos a gaitas de fole, o som incitava tropas,
transmitia ordens, e era usado para aterrorizar inimigos. O som
permaneceu uma arma potente, uma força que perturba pelo fato de
estar liberada do visual ou do reconhecível e atua simbolicamente na
imaginação, infiltrando e desestabilizando o poder.
No romance Yawar Fiesta, de Arguedas, sobre lutas indígenas nas
montanhas do Peru, as waka-wak´ras, ou “trombetas da Terra”, são um
som muito pertubador para as autoridades locais. As trombetas anunciam
a Yawar Fiesta, uma forma indígena de tourada que expressa o conflito no
romance. Enquanto a cidade de Puquio está geograficamente dividida por
classe e etnicidade, e controlada pela Patrulha Civil, o som não é tão
facilmente reprimido, enquanto as “vozes” das waka-wak´ras crescem
“de baixo” e invadem cada casa, cada quarto, cada pessoa. O som não é
apenas uma forma de resistência, mas um ataque à dominação
materialmente representada em distintas formas de espacialidade.
“Dos quatro cantos, enquanto caía a noite, a música da tourada ascendia
até a Girón Bolívar. Da praça Chaupi, direto até a Girón Bolívar, o
turupukllay subiu ao vento. Nas lojas, no salão de bilhar, nas casas dos
notáveis, as garotas e os cidadãos o escutavam.
‘Á noite essa música soa como se viesse do cemitério’, eles diziam.
‘É, senhor. Ela pertuba a mente.’
‘Esse cholo Maywa é o pior de todos. Sua música desce direto até as
profundezas de minha alma.’
O som das waka-wak´ras interrompeu a conversa dos mistis (3) sob as
luzes nas esquinas da Girón Bolívar; pertubou a paz dos que jantavam nas
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casas dos cidadãos poderosos. Nas vizinhanças indígenas, os rapazes
podiam se reunir quando Don Maywa tocava...
Algumas vezes, a trombeta de Don Maywa era escutada na cidade
quando o padre estava recitando o rosário na igreja com senhoras e
moças da cidade e com algumas das mulheres das vizinhanças indígenas.
A música de tourada era deprimente para aquelas almas devotas; o padre
também parava por um momento quando a melodia entrava nele. As
moças e senhoras se olhavam com desconforto como se touros malhados
ou amarronzados estivessem mugindo do vão da porta da igreja.
‘Música do diabo!’ O vigário dizia.”.(Arguedas)
Além de associações com a tourada, o mero lamento das waka-wak´ras é
complexo em sua significação, ao mesmo tempo recordando a presença
dos índios e a ameaça representada por sua dominação historicamente
incompleta tanto por parte da igreja quanto do estado. A música é
particularmente poderosa em sua capacidade de evocar aspectos
desconhecidos do Outro, desencadeando o medo e a ansiedade que
existem nas mentes dos mistis (ladinos). Neste sentido, ela funciona como
uma tática psicológica/espacial que é difícil de reprimir.
Sistemas de som ou P.A.s (4) podem criar uma espacialidade interna ou
“zona autônoma temporária”, mas através deles a música pode atravessar
e desafiar divisões sociais organizadas espacialmente. Em seu trabalho
sobre o caráter cultural de divisões étnicas e de classe em Cartagena, na
Colômbia, Joel Streicker descreve o uso do som como resistência e uma
“forma não-espacial de reivindicar o espaço”. Ele historiciza a construção
do espaço urbano que se tornou cada vez mais dividido por classe e raça
para deixar certas áreas “seguras” para os “ricos” e o turismo. A
separação espacial de ricos e pobres é culturalmente simbolizada pelo
Festival do Dia da Independência que antes incluía todos os grupos
sociais, mas que as elites locais mais recentemente adaptaram num
evento que exclui os pobres (que são em grande parte de descendência
africana). Muitos jovens da classe baixa tem reivindicado a dança do
festival através do que Streicker descreve como um “movimento em
crescimento, racialmente consciente e de cultura da classe popular,
centrado na música e na dança chamada champeta”. Além da construção
de uma identidade alternativa através da música africana como oposta à
música latina, os estrondosos sistemas de som em tais bailes difundem a
música além dos muros da cidade colonial. “Esta música fala de – e é –
uma presença que os ricos não podem evitar, um cerco praticamente do
crepúsculo à aurora recordando aos ricos a Outridade da classe
popular...e um modo de grupos desfavorecidos exercerem controle sobre
o espaço...” Através da transmissão de sua própria música diretamente
para o espaço da cultura oficial, os champetudos criam uma luta em torno
do privilégio de classe e da identidade por meio do som.
Conclusão
Neste artigo mostrei como a música popular pode ser um espaço de
atividade contra-hegemônica. Para fins explicativos, desconstruí
atividades e formas musicais de uma forma artificial. A execução e a
mercantilização de produtos musicais não estão claramente determinadas
e a forma como músicas e públicos negociam estas esferas varia em cada
situação. Não há nenhuma estratégia correta aqui. De fato, a resistência é
necessariamente um processo criativo, imaginativo e argumentos que
propõem ter a “única resposta” são cada vez mais suspeitos, Em vez disso,
sustento que a música e a resistência são moldados no momento de sua
criação, uma prática musical/política que é negociada por agentes sociais
em localizações espaciais e temporais específicas. Enquanto a própria
fixidez é cada vez mais reconhecida como uma condição necessária para a
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