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A Execução e A Zona Autônoma Temporária ou “O Espaço é o Lugar”
(Sun Ra)
A prática de grupos oprimidos na sociedade tentando conquistar uma
“autonomia relativa” é historicamente inseparável da própria dominação.
Estudos críticos que vão além da análise do texto e da produção cultural
sugerem uma ligação entre práticas musicais e formações sociais que
buscam autonomia dos efeitos do poder no sentido mais amplo. Ao
mostrar uma descrição complexa da atividade musical como resistência
em tais situações, exploro três temas nesta parte: a sua execução como
organização social e potencialização cultural de grupos oprimidos; a
música como prazer, valor de uso e ameaça à imperiosa mercantilização
do desejo sob o capitalismo; a música como espaço de Recusa e da “zona
autônoma temporária”.
A execução da música é enigmática se vista a partir de uma perspectiva
ocidental/capitalista por que ela é freqüentemente improdutiva
(materialmente) e apesar disso ela produz (socialmente). A música
popular é uma atividade social, um espaço de interação e ideologia, uma
comunidade temporária que normalmente inclui algum tipo de
movimento ou expressão física que é prazerosa. Enquanto a execução da
música é uma “ocasião extrema” por que ela é temporal e não repetida, o
musicologista John Shepherd afirma que “toda música deveria ser
entendida dentro do contexto da política do cotidiano”. Ele argumenta
que a atividade musical, através de seu complexo sistema de significação,
tem a capacidade de desenvolver a consciência, a subjetividade
individual, e formações sociais. É somente no mundo industrializado que a
música virá a ser erigida como uma propriedade privilegiada, atividade de
lazer ou diversão de massas. Por sua capacidade de mediar o social –
temporalmente, espacialmente e corporalmente – a música é um
poderoso espaço de luta na organização do significado e da experiência
vivida. “A música pode ao mesmo tempo ‘territorializar’ e
‘desterritorializar’ o cotidiano, evocando e transcendendo suas áreas,
espaços e temporalidades por mais que estes sejam mediados
visualmente e lingüisticamente”.
Mais além da música como um espaço de crítica de ideologias
dominantes, críticos culturais têm enfatizado a importância da
solidariedade cultural que ocorre através da execução. Para a diáspora
africana e outros grupos oprimidos pelo colonialismo e regimes
repressivos, expressões culturais de música e dança têm sido uma fonte
de força e formação de identidade essencial para lutas de liberação.
Gilroy diz que “culturas expressivas negras se afirmam enquanto
protestam”. Isto é bem demonstrado na música calipso de Trinidad, que
está historicamente ligada tanto à emancipação quanto à descolonização.
A tradição católica francesa do carnaval começou a ser celebrada em
Trinidad no começo do século 19 e pelos cem anos seguintes, carnaval,
liberdade, revolta e música estiveram todos ligados de várias formas. O
“quintal” era um espaço de relativa autonomia para escravos e através de
intrincadas sociedades secretas e formas codificadas de comunicação a
resistência à escravidão foi construída. Durante os anos 1830, uma
extensa rede de informação evoluiu, quando escravos eram
surpreendidos cantando uma canção em dialeto sobre uma bem-sucedida
revolta de escravos no Haiti. Depois da libertação, os donos de plantações
substituíram o trabalho escravo por imigrantes indonésios contratados,
arrastando muitos negros para os centros urbanos e a pobreza
permanente. A tradição da música e da expressão continuou no quintal
urbano e no começo do século 20 a música de carnaval começou a ser
executada em “tendas” de show. As tendas de calipso fundiram
eficazmente uma música nascida na resistência e um público bastante
abrangente numa reunião social continuada, através da qual uma contra-
narrativa ao discurso colonial e uma identidade cultural emergente foram
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formadas. Quando as canções eram executadas na frente de uma platéia,
elas eram imediatamente validadas ou repudiadas pelo público, e o
engenho e criatividade dos músicos de calipso eram uma fonte de
potencialização cultural para todos.
Um outro exemplo de diálogo entre afirmação cultural e resistência
política é elaborado na discussão de Fairley do grupo chileno Karaxú!, que
foi formado pouco depois do golpe apoiado pelos EUA em 1973. Fairley
sustenta que:
“...o significado musical é negociado entre elementos da apresentação e
entre músicos e platéia. Ele está inextrincavelmente ligado à experiência
vivida, à prática política, a sentimentos e crenças. Está enraizado na vida
política e social...A criação e execução desta música é parte do processo
de aprendizagem de conviver, e compreender a experiência – de re-
integrar o des-integrado.”
Fairley descreve as apresentações do Karaxú! Como importantes
“ocasiões rituais” para enfatizar tanto a complexidade de significado
quanto a inclusão do público como fundamentais para o evento. Seus
shows são um vigoroso lembrete, se interpretados simbolicamente, de
eventos históricos e mobilização política nas quais a expressão cultural e o
engajamento político sobrevivem juntos em exílio.
Em segundo lugar, abordo a música como prazer, a política das formas de
prazer que existem como “valor de uso” e como isto é uma ameaça é
mercantilização capitalista do desejo. Com poucas exceções, a teoria e
atividade políticas no ocidente têm sido elaborados como uma prática
totalmente séria e abstrusa. Embora certamente viesse a concordar com a
maioria dos ativistas políticos que a história global de campanhas
genocidas, as lutas contínuas contra a opressão e mesmo os menores atos
de dominação física e social suscitem tanto a ira quanto a necessidade de
organização e ação política, também argumento que a ideologia e
estratégias políticas precisam ser continuamente reformuladas. Nesta
época, que pode ser pensada como a derrota histórica da esquerda, têm
sido levantadas questões sobre paradigmas de teoria e prática políticas,
particularmente em relação ao pensamento por trás de slogans como “o
caminho é árduo, mas o futuro é radiante”. Conceber política e prazer
como esferas incompatíveis tem sido um grande problema, gerando tanto
um menosprezo pelo corpo (que tem sido envolvido em formas de tirania
política), assim como torna difícil explorar tanto a atração quanto a
persistência de formas de “entretenimento” e “espiritualidade”.
Alguns teóricos estão começando a reconhecer a necessidade de
reintegrar estas esferas e desenvolver noções mais complexas de
resistência, distintas do instrumental puramente político. McClary e
Walser criticam a esquerda tradicional e a musicologia por sua
abordagem positivista, derivada do Iluminismo, em relação ao significado
na música, e ligam ambos a sistemas planejados mais para reforçar
normas que libertar.
Parte do problema é aquele que aflige cronicamente a esquerda: um
desejo de encontrar pautas políticas explícitas e complexidade intelectual
na arte que deseja reivindicar, e uma desconfiança daquelas dimensões
da arte que apelam aos sentidos, ao prazer físico. Mas o prazer
freqüentemente é a política da música – prazer como interferência, o
prazer dos povos marginalizados que escapou da manipulação. O rock é
um discurso que tem freqüentemente sido o mais eficaz politicamente
quando seus produtores e consumidores estão menos conscientes de
quaisquer dimensões políticas ou intelectuais...
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