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Numa abordagem original, Attali (1985) teoriza sobre a mudança histórica
na sociedade através de uma leitura semiótica do som. Ele mapeia a
disseminação global do capitalismo através do controle do som societário
e da “desritualização” do “velho código” da música – lócus da organização
social, da mitologia e da cura. Attali articula a diferença entre a música
produzida por uma indústria e a música como improdutiva, um fim em si
mesmo com a capacidade de criar seu próprio código. A música é uma
ameaça a formas hegemônicas discurso e relações sociais por que ela
oferece maior potencial de criar novas formas de comunicação e criar o
“prazer de ser, em vez de ter”. O entendimento da música como
resistência, em Attali, resulta tanto da teoria do fetichismo da mercadoria
de Marx quanto da teoria de Foucault do poder como a saturação do
discurso, das relações sociais e dos corpos.
“No século dezessete e dezoito tem origem uma forma de poder que
começa a se exercer através da produção social e do serviço social. Torna-
se uma questão de obter trabalho produtivo de indivíduos em suas vidas
concretas. E, em conseqüência, uma ‘incorporação’ real e efetiva do poder
foi necessária, no sentido em que o poder tinha de ser capaz de obter
acesso aos corpos dos indivíduos, aos seus atos, atitudes e modos de
comportamento cotidianos” (Foucault 1980)
Não haverá formas nas quais a música seja um lembrete constante da
existência do prazer como valor de uso e, como tal, represente uma
ameaça a um sistema que necessariamente investiga e explora todas as
formas de prazer e energia para uso produtivo?
Minha terceira questão se volta para a noção de Attali da música como
um espaço de “realidade em construção”. Esta idéia é repetida por
críticos culturais que escrevem sobre subculturas, sobre a cultura de
expressão negra e por teóricos que articulam a resistência no sentido
mais amplo possível – mais além da ideologia política, para uma total
transformação de valores e do comportamento vivido. Sugiro pensar em
tais idéias através de uma categoria fluida que concebe formas de
resistência cultural, coletiva, como práticas localizadas de grupos
específicos. A “Zona Autônoma Temporária”, ou TAZ, é útil para articular
este conceito e aplico-a à música em situações específicas. A teoria da TAZ
de Hakim Bey começa com uma crítica da revolução a partir de duas
posições principais. Ele argumenta que o atual período é aquele em que
um “amplo empreendimento seria um martírio inútil” e, vindo de uma
tradição anarquista, desconfia da revolução por causa de sua tendência
histórica de reinstituir o autoritarismo numa forma diferente. Ele
contrapõe a revolução ao levante, focando nesta atividade como um tipo
de “enclave livre”, como festival, e uma Recusa temporária ou limitada na
qual se pode “retirar-se da área de simulação”. Bey vê a TAZ tanto como
uma estratégia quanto como uma “condição para a vida” Ele afirma:
“A TAZ é uma tática perfeita para uma época em que o Estado é
onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de
rachaduras e fendas. E, uma vez que a TAZ é um microcosmo daquele
"sonho anarquista" de uma cultura de liberdade, não consigo pensar em
tática melhor para prosseguir em direção a esse objetivo e, ao mesmo
tempo, viver alguns de seus benefícios aqui e agora.”
Em conclusão, a TAZ é um espaço fora do olhar do poder e do estado. Bey
tira inspiração do espírito da Comuna de Paris e das comunidades
maroons da Jamaica e do Suriname.
Enquanto Bey menciona brevemente a “música como princípio
organizacional”, Hebdige e Gilroy ligam a música africana a um tipo de
espaço utópico, antagônico. Embora ambos tendam a essencializar a
música africana de um modo que acho problemático, o cerne de sua
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discussão de subculturas e tradições negras de execução musical articula
esta idéia de autonomia temporária. Hebdige enfatiza o cunho ideológico
de atividades cotidianas e como o estilo subcultural na Inglaterra é uma
forma simbólica de luta contra a ordem social, ou “uma prática de
resistência através do estilo”. Ao descrever o punk, Hebdige argumenta
que a música e a dança formavam um espaço fundamental no qual se
efetuava a revolta que “minava todo discurso conveniente” e criava um
“sistema alternativo de valores”. “Idéias convencionais de beleza foram
descartadas...partes de uniformes escolares eram simbolicamente
manchadas...danças punk como o pogo subvertiam as formas tradicionais
de namoro...demonstrações ostensivas de interesse heterossexual eram
geralmente vistas com desprezo e suspeita...ataques frontais (à) noção
burguesa de entretenimento ou o clássico conceito de ‘arte elevada’...” A
descrição de Hebdige ecoa meu próprio envolvimento como punk na São
Francisco do final dos anos 1970 e começo dos 1980. O que achei de mais
significativo em relação a esta cena foi que ela favoreceu um ethos de
“ação direta” através do qual comportamento e ideologias
(principalmente posições reacionárias e alguns aspectos da política
esquerdista) eram abertamente desafiados e em alguns casos
transformados. Este sentido de engajamento teve um impacto
significativo em papéis de gênero já que muitas mulheres não se
contentavam em ser fãs ou apenas cantoras, mas começaram a tocar
instrumentos em bandas e a se expressar em apresentações que eram
virtualmente inéditas na música popular ocidental.
Paul Gilroy discute o punk britânico e suas ligações com o reggae através
do movimento “two-tone” e da organização jovem “Rock Against Racism”,
mas toca principalmente na cultura de expressão negra como um espaço
de “experiência, percepção e memória coletivas no presente...a
construção da comunidade por meios simbólicos e rituais...” Escrevendo
sobre o rap, o funk e o reggae, ele argumenta que os espaços públicos nos
quais a dança acontece “são transformados pelo poder destas músicas de
dispersar e suspender a ordem espacial e temporal da cultura
dominante”. No Rastafarianismo, o “sistema da Babilônia” simboliza a
total rejeição da “escravidão mental”, do racismo e das condições
econômicas exploratórias sob o capitalismo; é “uma crítica da economia
do tempo e do espaço que está identificada com o mundo do trabalho e
do salário do qual negros estão excluídos e a partir do qual eles, como
conseqüência, proclamam e celebram sua exclusão”. Na obra recente de
Gilroy, ele também enfatiza a necessidade de distinguir a “estética
política” de diferentes grupos musicais dentro da cultura popular negra.
Meu último exemplo se centra num artigo de Pablo Vila, “Rock Nacional
and Dictatorship in Argentina” (“Rock Nacional e Ditadura na Argentina”,
1992), no qual ele mostra que os concertos criavam um espaço no qual se
construiu um “nós” que constituiu um desafio cultural à ideologia da
ditadura. Como o regime militar tomou o poder em 1976 e procurou
dispersar todas as coletividades e suprimir formações políticas
tradicionais, os concertos de rock se tornaram um espaço de atividade
antagonista altamente codificada . Vila se refere a tais locais como
espaços autônomos de interação para “amplas parcelas da juventude, um
refúgio, uma esfera de resistência, e um meio de participação no contexto
de uma sociedade fechada e autoritária em crise”. A experiência comum
da rebelião juvenil e sua forma, o concerto de rock, se tornaram
altamente politizados no contexto da ditadura militar e da censura da
expressão política e cultural.
Vila afirma que a mensagem estava na atividade já que a música favorecia
uma cultura que demandava incorruptibilidade contra o transar
(interações com o sistema) e pelo zafar (escapar do sistema de todas as
formas possíveis). Cita a importância do movimento do rock nacional para
a juventude argentina na medida em que “recuperava o sentido da vida
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