[46] Sobre a dimensão cosmopolita
do Fórum Social Mundial,ver Fisher,
William F. e Ponniah, Thomas. Ano-
ther world is possible: popular alternati-
ves to globalization at the World Social
Forum. Londres: Zed Books, 2003;
Sen, Jai e outros (orgs.). World Social
Forum: challenging empires. Nova Déli:
Viveka Foundation, 2004; Santos,
Fórum Social Mundial,op.cit.
[47] Gandhi provavelmente foi o
pensador-ativista dos tempos mo-
dernos que mais consistentemente
pensou e atuou em termos não-abis-
sais. Tendo experienciado as exclu-
sões radicais típicas do pensamento
abissal, não se desviou do seu propó-
sito de construir uma nova forma de
universalidade capaz de libertar tan-
to o opressor como a vítima, con-
forme reafirma Ashis Nandy:“A visão
gandhiana desafia a tentação de igua-
lar o opressor na violência e de read-
quirir uma auto-estima própria como
competidor num mesmo sistema. É
uma visão assente numa identifi-
cação com os oprimidos que exclui a
fantasia da superioridade do estilo de
vida do opressor, tão profundamente
enraizada na consciência daqueles
que reclamam falar em nome das víti-
mas da história” (Traditions, tyrann-
yand utopias: essays in the politics of
awareness. Oxford:Oxford University
Press,1987,p.35).
[48] Cf. Santos, Toward a new com-
mon sense,op.cit.,pp.506-19.
[49] Cf.Santos, A gramática do tempo,
pp.137-78.
[50] Imaginemos que um camponês
africano e um funcionário do Banco
Mundial se encontrassem num cam-
po africano: segundo o pensamento
abissal, esse encontro seria simultâ-
neo (pleonasmo intencional) mas
não contemporâneo; já de acordo
com o pensamento pós-abissal o
encontro é simultâneo e ocorre entre
dois indivíduos contemporâneos.
[51] Hegel, Georg W. F. Vorlesungen
über die Philosophie der Geschichte.
Frankfurt am Main:Suhrkamp,1970.
[52] Esse reconhecimento da diver-
sidade e da diferenciação é um dos
componentes fundamentais da Wel-
tanschaung [visão de mundo] por
meio da qual podemos imaginar o
século XXI. Essa Weltanschaung é
radicalmente diferente daquela ado-
nhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conheci-
mento além do conhecimento científico
52
. Isso implica renunciar a
qualquer epistemologia geral.Existem em todo o mundo não só diver-
sas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do
espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o
que conta como conhecimento.No período de transição que se inicia,
em que ainda persistem as perspectivas abissais de totalidade e uni-
dade,provavelmente precisamos de uma epistemologia geral residual
ou negativa para seguir em frente:uma epistemologia geral da impos-
sibilidade de uma epistemologia geral.
O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambí-
guo.Por um lado,a idéia da diversidade sociocultural do mundo se for-
taleceu nas três últimas décadas, favorecendo o reconhecimento da
pluralidade epistemológica como uma de suas dimensões. Por outro
lado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do
seu tempo, uma das mais bem consolidadas premissas do pensa-
mento abissal talvez seja,ainda hoje,a da crença na ciência como única
forma de conhecimento válida e rigorosa.Ortega y Gasset propôs uma
distinção radical entre crenças e idéias, entendendo por estas últimas
a ciência ou a filosofia
53
. A distinção reside em que as crenças fazem
parte de nossa
identidade e subjetividade, enquanto as idéias nos são
exteriores. Enquanto nossas idéias nascem da dúvida e permanecem
nela,nossas crenças nascem da ausência de dúvida.No fundo,a distin-
ção é entre ser e ter: somos as nossas crenças, temos idéias. O que é
característico do nosso tempo é o fato de a ciência moderna pertencer
simultaneamente ao campo das idéias e ao campo das crenças. A
crença na ciência excede em muito o que as idéias científicas nos per-
mitem realizar.Assim,a relativa perda de confiança epistemológica na
ciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com a
crescente crença popular na ciência. A relação entre crenças e idéias
como duas entidades distintas passa a ser uma relação entre duas
maneiras de experienciar socialmente a ciência. Essa dualidade faz
com que o reconhecimento da diversidade cultural do mundo não sig-
nifique necessariamente o reconhecimento da diversidade epistemo-
lógica do mundo.
Nesse contexto, a ecologia de saberes é basicamente uma contra-
epistemologia. O impulso básico para o seu avanço resulta de dois
fatores.O primeiro consiste nas novas emergências políticas de povos
do outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismo
global: globalização contra-hegemônica. Em termos geopolíticos,
trata-se de sociedades periféricas do sistema-mundo moderno onde a
crença na ciência moderna é mais tênue,onde é mais visível a vincula-
ção da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e impe-
rial, onde conhecimentos não-científicos e não-ocidentais prevale-
86 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
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Boaventura de Sousa Santos
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