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Uma pequena ficção de memória resulta, pois, da busca do pai de Chuy por um
sentido de justiça que obrigasse o vendedor a “corrigir” seu erro em não apenas perder a
fotografia de seu filho bem como, principalmente, em deixar de compor um novo retrato em
três dimensões com um relevo em madeira que lhe conferiria um aspecto de parecer estar ali
vivo, presente o referente da foto. Seu filho é um dos tantos que foram tragados (desde Cuba
em 1898, passando pela 2ª Grande Guerra e pela intervenção na Coreia, até a Guerra do
Vietnã) por certa invenção de cidadania, verdadeiro “drama político de la ciudadanía, la
garantía sacrificial del acceso de sujetos minoritarios o coloniales a los exclusivos territorios
de una supuesta plenitud ciudadana” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49, a partir de
Álvarez Curbelo, 1999).
Por ter seu filho mais velho dado “somente” como desaparecido na Guerra da Coreia
(1950-1953), a esperança de tê-lo vivo se vê renovada em seus familiares quando se deixam
levar pelo prometido por um vendedor de retratos esculpidos em três dimensões. Portanto, a
partir da ficção do “como que vive”, do “como que está vivo”, não lhes importará à mãe nem
ao pai de Chuy que, ao fim e ao cabo, o retrato feito todo de memória pelo vendedor em
apuros seja fruto da observação diária que lhe fora imposta e do aproveitar-se da máxima
oportuna de que os filhos sempre “lembram” o pai. E se não lembram, lembrarão, parecerão
com eles um dia, mesmo que isso esteja apenas na ilusão forçosa, forçada, memória desejada,
fingida, “realizada” na construção de um retrato baseado em um referente já inexistente,
persistente senão somente na ilusão/ficção de um pai; ou, ainda melhor, na construção de um
retrato tendo o pai como referente/“modelo” e, não o filho, aquele que deveria ser o
verdadeiro referente do “retrato” abultadito, “retrato-pintura-escultura”.
Porém, a partir da noção dessa ficção de memória proposta já por Ramos e Buenrostro
(2012) em seu prólogo à edição argentina do único romance de Rivera, pretendo tocar
também num seu desdobramento, a relação estabelecida para com observações de uso de
artifícios de mimese de memória fotográfica e sua consequente relevância para minhas
observações sobre a questão da ficção envolta na eleição/identificação de um menino
narrador, um menino como narrador de ...y no se lo tragó la tierra.
Uma memória fotográfica seria aquela em que a pessoa teria a capacidade de
reproduzir, de descrever através da recordação (com surpreendente riqueza e precisão de
detalhes) momentos, situações por ela vistas, ouvidas, vividas. No que se refere ao conto-
capítulo “El retrato” chama atenção uma carta do autor para o professor David L. Epstein.
Datada de 14 de fevereiro de 1978, nela Tomás Rivera descreve para Epstein, em resposta a
um pedido deste último, “some thoughts I had when I set about writing ‘The Portrait’”
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(RIVERA, [1978] 2012, p. 264)
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. A partir de então, Rivera conta haver tido a ideia para “El
retrato” quando, durante o período em que se achava escrevendo ...y no se lo tragó la tierra,
visitou um tio em San Antonio (Texas) e viu em sua casa um retrato dele incrustado em
madeira que ele, Rivera, não via fazia já algo em torno de vinte anos. O autor conta, ainda,
que o retrato trazia a sua lembrança o/um vendedor que ia a sua cidade natal, Crystal City, a
recolher pedidos para a transformação de fotos em retratos tridimensionais com relevo em
madeira – tal e qual a situação descrita na ficção de “El retrato”.
Na referida correspondência, segue como destaque o relato de outra recordação que o
retrato na casa de seu tio provocara em Rivera. A lembrança era a de uma ocasião da infância
do próprio Tomás Rivera na qual ele e outros meninos, brincando dentro de um bueiro,
encontraram uma bolsa repleta de fotografias que haviam sido recolhidas pelo vendedor, mas
que aparentavam haverem sido descartadas, ali abandonadas. Se lançamos olhar novamente
para o conto-capítulo ora trabalhado será interessante notar a semelhança quase “fotográfica”
do relato epistolar de Rivera para com o trecho mais para o final de “El retrato”, onde é
descoberta a farsa na demora de entrega do produto encomendado pelos pais de Chuy:
Y pasaron dos semanas más para cuando se descubrió todo. Se vinieron unas aguas
muy fuertes y unos niños que andaban jugando en uno de los túneles que salían para
el dompe se hallaron un costal lleno de retratos todos carcomidos y mojados. Nomás
se notaban que eran retratos porque eran muchos y del mismo tamaño y casi se
distinguían las caras. Comprendieron todos luego luego. Don Mateo se enojó tanto
que se fue para San Antonio para buscar al fulano que los había engañado
(RIVERA, [1971] 2012, p. 144).
A correlação mimética, fotográfica, a situação que nos faz pensar no uso de uma
memória fotográfica, por assim dizer, “a serviço da ficção”, torna-se inda mais aguda quando
se observa o fragmento final “Don Mateo se enojó tanto que se fue para San Antonio”. Esta
mesma San Antonio está tanto nesse trecho do conto quanto em seu início, quando se narra
que é de lá que vêm os vendedores de retratos para os bairros chicanos. E está também San
Antonio tanto no início da carta enviada por Rivera em resposta ao Sr. Epstein – quando
Tomás conta da visita à casa de seu tio – como mais para o final dessa mesma carta, onde o
autor chicano relata que
I also recalled that one man had gone to San Antonio in search of the place where
they inlaid portraits because apparently the salesman had taken his money and after
almost a year he hadn't returned. This man returned with the inlaid picture of his son
who had been killed in the war. I knew the young man and when I saw the inlaid
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“algumas ideias que tive quando comecei a escrever ‘El retrato’” (Tradução minha).
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