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vida, em especial de sua infância, sugere na relativização espaço/tempo (o do ocorrido, o do
romance) uma “recuperação” de suas memórias, seus recuerdos. Tal renovação, tal realização
memorialística aponta para a, supõe a habilidade de uso de uma memória fotográfica, a qual,
potencializada na e pela ficção, torna-se, em verdade, uma ficção de memória fotográfica.
Será este caráter a recair, a pairar por sobre a ficção de ...y no se lo tragó a meu ver
responsável de ação direta em outro engano por que se deixa levar até mesmo a crítica que se
debruça a analisar o romance riverano: a ficção do menino narrador. Há, contudo, mais
porquês a decerto implicar em segundo plano sobre essa questão do menino-protagonista-
(autor)-narrador. E todas elas se desdobram a partir da memória fotográfica enquanto termo
que falha em suas intenções.
A concepção de memória fotográfica carrega em si um duplo aspecto, por assim dizer,
decepcionante. Em primeira instância, ela se revela uma ficção mesmo para ramos da ciência
que se dedicaram a estudá-la, sendo que a neurociência é, em especial, um dos campos
científicos que mais pesquisaram sobre o assunto. Tomando em conta que uma memória
fotográfica pressupõe sua “aferição” pelo contraste com a de outro sujeito partícipe dos ou
nos eventos rememorados, resulta que dessa “acareação” nada mais poderá ser extraído que
profundas considerações sobre prismas, perspectivas, pontos de vista. Por essa razão, quando
revolve o assunto, a neurociência baseia seus resultados em testes objetivos, os quais,
nenhum, até hoje, apontou de fato para o registro de uma verdadeira memória fotográfica, ao
menos não como se a quer
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. Vem, enfim, da ciência seu primeiro teor “decepcionante”: a
constatação objetiva de que a memória fotográfica, a memória como produto de registro de
uma lente fotográfica humana não existe.
O segundo aspecto “decepcionante” ligado à questão da memória fotográfica está,
pois, justamente, intimamente ligado aos objetivos da ciência que se dedica a estudá-la. Lidos
os artigos voltados a tratar do tema, observa-se a busca na verdade por uma espécie de
memória perfeita, capaz de rememorar tudo, e com total precisão. Ora, certo está que
tampouco a origem filosófica do termo eidético (coincidentemente mais vinculada ao
conhecimento intuitivo e por consequência à relação entre aparência e perspectiva) ou mesmo
a moderna e popular acepção adjetiva “fotográfica” dariam conta de uma completa apreensão
e reprodução da disposição de objetos captados pela observação humana. Está então no
engodo do que pode vir a ser uma fotografia o segundo aspecto decepcionante do termo
“memória fotográfica”.
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Os artigos revisados sobre o assunto constam da bibliografia desta tese.
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É a própria fotografia decepcionante se se a quer tomada como retrato fiel do referente
do qual é apanhada. A memória fotográfica é, portanto, nessa linha, uma ficção por ser
também a própria fotografia uma ficção, pelo menos no desejo a ela costumeiramente
transferido de total identidade com, de que seja totalmente idêntica ao objeto desde o qual
apanha, capta a imagem. Assim, ao aludir, ao remeter ao processo fotográfico é a memória
fotográfica uma ficção pela própria imperfeição, pela própria incompletude da fotografia em
sua ficção, em seu parecer, seu fingimento de cópia total e perfeita, quando, na verdade,
apenas revela um momento sujeito às mais variadas apreensões e, a partir daí, hipóteses,
sugestões, interpretações. Das interpretações da ficção de memória a que nos submetemos na
ficção de Tomás Rivera, uma delas é a de que o caso de “El retrato” daria conta de outro
termo cunhado pela neurociência: o de síndrome hipertimésica (do grego timesis, lembrar),
evento em que a perfeição fotográfica de certas memórias estaria em realidade restrita às
experiências pessoais dos sujeitos que as detêm. Em todo caso, parece demandar tal apreensão
mais cabível aos artifícios de que lança mão Rivera na construção de seu enredo um caso de
memória fotográfica mais particular; o que não impede, por conseguinte, que seja lido “El
retrato” como um desnudamento de ficção de memória fotográfica. É nesse tipo de ficção de
memória que se insere o menino e o leitor (acrítico, comum, leigo, vulgo ou não) atrapado
por seu narrado. É tal efeito de memória que instaura, por fim, a ficção do menino narrador.
Há também um terceiro aspecto decepcionante relacionado à questão da memória
fotográfica e sua ficção, sua simulação, sua noção aproximativa em ...y no se lo tragó la
tierra. A evidência dessa característica, dessa possibilidade de leitura está, como vimos, tanto
em um dos últimos capítulos da obra, o conto “El retrato”, quanto na última anécdota, a
estampa “Bartolo pasaba por el pueblo”. A estampa de Bartolo, ao servir, como já expliquei,
de epígrafe que abriria (pelos métodos descontínuos da lógica elíptica impressa ao e pelo
enredo) a obra inteira, e o capítulo “El retrato” (conto disposto descontinuamente a um conto
e outra estampa antes de “Bartolo...”) acabam dessa forma, (des)localizados, por
“contaminar”, por espalhar sua aura, seus ares de memória fotográfica (com devidos
“respaldo” e “justificativa” no registro ensaístico e epistolar de seu autor) através de todo o
romance.
Esse conjunto de ficções de memória se desenha do interior da narrativa (onde em “El
retrato”, por exemplo, os pais do personagem Chuy, figura retratada, borrada e redesenhada,
porquanto recriada e (re)inventada, deixam-se levar pela força fingida, tingida de memória
que têm do filho) a seu exterior: desde os ecos que a ficção encontra nos relatos explicativos
de Tomás Rivera em artigos e cartas a toda uma crítica que termina por se deixar enlevar pela
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