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aparente falta de linhas limítrofes (tênues que em efeito são) entre a figura do narrador e de
seu autor. Convém, portanto, tecer os porquês que me permitem tocar na incidência da ficção
de memória sobre a existência da ficção do menino narrador.
Julio Ramos e Gustavo Buenrostro (2012, p. 43) destacam com propriedade que ...y no
se lo tragó la tierra é “una novela recorrida por las múltiples voces que proliferan en el marco
de un uso muy flexible de la primera persona, el discurso indirecto libre y las conversaciones
corales”. Parece ser justamente esse uso bastante flexível das várias vozes que se apresentam
ou evocadas são na narrativa o artifício responsável pelo equívoco de confundir-se a figura do
protagonista do romance com a pessoa de seu autor, algo que incidirá diretamente também
sobre a problemática de que se assevere que o narrador a deliberar as outras vozes (da[s])
narrativa(s) é um menino que decerto alude à infância do escritor da obra.
Quando toca no processo de edição da obra, pelo qual contos foram incluídos e
excluídos desde a primeira versão enviada a Quinto Sol até a publicação final, é também
Gustavo Buenrostro (2012, p. 193) quem afirma, mais especificamente a respeito da exclusão
do conto “El Pete Fonseca”, que os editores “acaso no comprendieron bien la distancia entre
el autor y su personaje”. Isto se explica pelo fato de que, ainda segundo Buenrostro (2012, p.
191), há em “El Pete Fonseca” uma “marcada distancia del narrador ante los eventos que
narra”. O conto citado
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“es un relato picaresco sobre las peripecias ‘amorales’ de un
protagonista pachuco” (BUENROSTRO, 2012, p. 192 – grifo do autor) que conquista, engana
e foge com o carro e todo o dinheiro de uma família (mulher e filhos) chicana. Por uma parte,
entende-se a eliminação do conto se compreendemos a prioridade do pensamento intelectual
chicano à época de afirmar os valores de sua gente frente a estereótipos a partir dos quais
eram frequentemente submetidos, julgados e menosprezados.
Daí a necessidade de afastamento de uma iminente, mas também já eminente, figura
no campo intelectual chicano, como propagadora talvez desses mesmos estereótipos, por mais
que, na verdade, a intenção de Rivera passasse pelo desnudamento e reconhecimento da
coexistência interna para que esta eliminasse a necessidade do reconhecimento e, portanto,
construção externa ao seio chicano (Cf. Buenrostro, 2012, p. 202). Por outro lado, entende-se
que, havendo uma distância maior entre o narrador e os eventos que conta em “El Pete”, é
52
Conforme aponta o próprio Buenrostro (Cf. 2012, 223), em nota explicativa aos anexos da edição argentina,
“El Pete Fonseca” foi escrito em espanhol, mas, uma vez excluído da edição final de ...y no se lo tragó, foi
publicado a primeira vez em inglês somente no ano seguinte à edição do romance, em Aztlán: an Anthology of
Mexican-American Literature (1972).
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natural pensar-se na preservação mais coesiva de uma não tão distante ubiquação no todo,
ainda que ex-cêntrico, do romance do qual foi excluído tal conto.
No entanto, apesar de atribuírem, mesmo quem sabe de forma justificada, essa falta de
compreensão da distância autor/personagem a outrem, os próprios Ramos e Buenrostro em
2012 parecem quase recair na confusão que causam os limites tênues entre figura e pessoa,
algo presente desde críticas anteriores, como em Justo S. Alarcón, quem em 1988 intitulava
seu artigo, já aqui utilizado, de “El autor como narrador em ...y no se lo tragó la tierra, de
Tomás Rivera”.
Situado temporalmente entre ambas as mostras críticas, há de se ressaltar também o
trabalho já mencionado de Ignacio J. Esteban Giner (2005). Em sua tese doutoral publicada
naquele ano sobre a contextualização da obra de Tomás Rivera, Giner dedica todo um
capítulo ao único romance do referido autor chicano. Assim, sua apreensão/aproximação
autor/narrador passa por uma cuidadosa proposta de identificação, quando, por exemplo, ao
abordar certa passagem do conto final sobre a qual me estenderei mais à frente, escreve que
“se puede identificar al muchacho protagonista con el propio autor” (GINER, 2005, p. 86).
Mas, ao mesmo passo, um pouco antes, esta mesma apreensão se apresenta, aqui em tom de
conversão, um tanto mais próxima de um Rivera autor e narrador, quando Giner (2005, p. 81
– grifo meu), ao tocar nas variadas pessoas, nas múltiplas vozes orquestradas pela narrativa,
aponta que “El rol de narrador lo asumen varias personas a lo largo de la novela, ya sea el
muchacho protagonista, el muchacho ya adulto y convertido en autor de su autobiografía, en
narrador omnisciente, o incluso el propio Tomás Rivera”. Porém, a cuidadosa conversão
proposta por Giner parece render-se à flutuação perigosa que vida e obra do autor chegam
mesmo a permitir, quando, logo após o trecho supracitado, ele afirma que
El narrador omnisciente se presenta a veces también como un niño que ve el mundo
con sus propios ojos (...) o como un hombre mayor, que podría ser el mismo Rivera
ya convertido en escritor, pues, como sabemos, la novela está repleta de elementos
autobiográficos (GINER, 2005, p.81).
Vêm, enfim,
d
esta arriscada proximidade com a autobiografia, as incursões do
mesclar-se, e confundir-se, narrador e autor em ...y no se lo tragó la tierra, posição assumida
de maneira mais efetiva pelo já mencionado S. Alarcón. É importante ressaltar que, mesmo
bastante anterior aos posicionamentos dos outros críticos trabalhados no presente final de
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