state”.
UCLA Law Review, vol. 45,
1997, pp. 1-98), “regulação externali-
zada” (O’Rourke, Dara. “Outsour-
cing regulation: analysing non-
governmental systems of labor
standards monitoring”.Policy Studies
Journal,vol.31,2003,pp.1-29) ou sim-
plesmente “governança” (MacNeil,
Michael, Sargent, Neil e Swan, Peter
(orgs.). Law, regulation and gover-
nance. Ontário: Oxford University
Press,2000;Nye,Joseph e Donahue,
John (orgs.). Governance in a globali-
zing world. Washington, DC: Broo-
kings Institution, 2000). Para uma
crítica, ver Santos, Fórum Social Mun-
dial,op.cit.,pp.29-63.
[43] Não me ocupo aqui dos debates
atuais sobre cosmopolitismo.Na sua
longa história, o cosmopolitismo
significou universalismo,tolerância,
patriotismo,cidadania global,comu-
nidade global de seres humanos,cul-
turas globais etc. O que mais fre-
qüentemente ocorre quando esse
conceito é aplicado – como instru-
mento para descrever uma realidade
ou como instrumento em lutas polí-
ticas – é que o caráter incondicional-
mente inclusivo de sua formulação
abstrata é utilizado em nome de inte-
resses excludentes de um grupo
social específico. De certo modo, o
cosmopolitismo tem sido privilégio
daqueles que podem usufruí-lo. A
forma como retomo esse conceito
prevê a identificação dos grupos cu-
jas aspirações são negadas ou torna-
das invisíveis pelo uso hegemônico
do conceito, mas que podem ser
beneficiados pelo uso alternativo do
conceito. Parafraseando Stuart Hall,
que levantou uma questão seme-
lhante em relação ao conceito de
identidade (“Who needs identity?”.
In:Hall Stuart e Du Gay,Paul (orgs.).
Questions of cultural identity.Londres:
Sage,1996,pp.1-17),pergunto:quem
precisa do cosmopolitismo? A res-
posta é simples: todo aquele que for
vítima de intolerância e discrimina-
ção necessita de tolerância; todo
aquele a quem seja negada a digni-
dade humana básica necessita de
uma comunidade de seres humanos;
todo aquele que seja não-cidadão
necessita da cidadania numa dada
comunidade ou nação. Em suma, os
socialmente excluídos, vítimas da
concepção hegemônica de cosmopo-
litismo, necessitam de um tipo
diverso de cosmopolitismo. Assim, o
cosmopolitismo subalterno consti-
tui uma variante oposta. Da mesma
é produto de relações de poder desiguais,essas iniciativas são anima-
das por um ethosredistributivo no sentido mais amplo da expressão —
compreendendo a redistribuição de recursos materiais,sociais,políti-
cos, culturais e simbólicos —, e como tal baseado simultaneamente
nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença.Desde
o início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão
mais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo
subalterno
46
.Entre as entidades que dele participam,os movimentos
indígenas são,do meu ponto de vista,aqueles cujas concepções e prá-
ticas representam a mais convincente emergência do pensamento
pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um tal
pensamento,já que os povos indígenas são os habitantes paradigmá-
ticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma “apro-
priação/violência”.
A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudo
em seu profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionar
a completude. Por um lado, defende que a compreensão do mundo
excede largamente a compreensão ocidental do mundo, e que a nossa
compreensão da globalização,portanto,é muito menos global do que
a própria globalização.Por outro lado,defende que quanto mais com-
preensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tor-
nará o fato de que ainda restam muitas outras por identificar, e que as
compreensões híbridas — com elementos ocidentais e não-ociden-
tais — são virtualmente infinitas.O pensamento pós-abissal parte da
idéia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua despro-
vida de uma epistemologia adequada,de modo que a diversidade epis-
temológica do mundo está por ser construída.
A seguir apresento um esquema geral do pensamento pós-abissal.
Concentro-me nas suas dimensões epistemológicas, deixando de
lado suas dimensões jurídicas.
PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO
O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a
exclusão social,no seu sentido mais amplo,assume diferentes formas
conforme seja determinada por uma linha abissal ou não-abissal,e da
noção de que enquanto persistir a exclusão definida abissalmente não
será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Du-
rante um período de transição possivelmente longo, confrontar a
exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo eficiente
as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo
moderno deste lado da linha. Uma concepção pós-abissal do mar-
xismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pre-
tende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em con-
84 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
❙❙
Boaventura de Sousa Santos
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forma que a globalização
neoliberal
não reconhece quaisquer formas
alternativas de globalização, tam-
bém o cosmopolitismo sem adjetivos
nega a sua própria especificidade. O
cosmopolitismo subalterno de opo-
sição é uma forma cultural e política
de globalização contra-hegemônica.
É o nome dos projetos emancipató-
rios cujas reivindicações e critérios
de inclusão social vão além dos hori-
zontes do capitalismo global. Ou-
tros, com preocupações similares,
também adjetivaram o cosmopoli-
tismo: “cosmopolitismo enraizado”
(Cohen, Mitchell. “Rooted cosmo-
politanism: thoughts on the left,
nationalism, and multiculturalism”.
Dissent, vol. 39, n. 4, 1992, pp. 478-
83), “cosmopolitismo patriótico”
(Appiah, Kwame A. “Cosmopolitan
patriots”. In: Cheah, Pheng e Rob-
bins, Bruce (orgs.). Cosmopolitics:
thinking and feeling beyond the natio.
Minneapolis: University of Minne-
sota Press, 1998, pp. 91-116), “cos-
mopolitismo vernacular” (Bhabha,
Homi. “Unsatisfied: notes on verna-
cular cosmopolitanism”. In: García-
Moreno, Laura e Pfeifer, Peter C.
(orgs.). Text and nation. Londres:
Camden House, 1996, pp. 191-207;
Diouf, Mamadou. “The Senegalese
Murid trade diaspora and the
making of a vernacular cosmopolita-
nism”. Public Culture, vol. 12, n. 3,
2000, pp. 679-702), “etnicidade
cosmopolita” (Werbner, Richard.
“Cosmopolitan ethnicity, entrepre-
neurship and the nation: minority
elites in Botswana”. Journal of Sou-
thern African Studies, vol. 28, n. 4,
2002, 731-53), “cosmopolitismo das
classes trabalhadoras” (Werbner,
Pnina. “Global pathways: working
class cosmopolitans and the creation
of transnational ethnic worlds”.
Social Anthropology, vol. 7, n. 1, 1999,
pp. 17-37). Sobre as distintas formas
de cosmopolitismo, ver Brecken-
ridge, Carol e outros (orgs.). Cosmo-
politanism.Durham:Duke University
Press, 2002.
[44] Santos, “A critique of lazy rea-
son”, op. cit.; A gramática do tempo,
op.cit.,pp.93-136.
[45] Cf. Santos, Boaventura de S.
“Os processos da globalização”. In:
idem (org.). Globalização e ciências
sociais. São Paulo: Cortez, 2002, pp.
25-104;A gramática do tempo,op.cit.
junto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sul
global,que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capi-
talismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cida-
dãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem um
tratamento sub-humano
47
.
Assim, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal é
condição sine qua non para começar a pensar e a agir para além dele.Sem
esse reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensa-
mento derivativo, que continuará a reproduzir as linhas abissais por
mais antiabissal que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamento
pós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois envolve uma rup-
tura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade oci-
dental. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significa
pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha,precisamente por-
que ele é o domínio do impensável no Ocidente moderno.A emergên-
cia do ordenamento da apropriação/violência só poderá ser enfrentada
se situarmos nossa perspectiva epistemológica na experiência social do
outro lado da linha,isto é,do Sul global,concebido como a metáfora do
sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo
global e pelo colonialismo
48
. O pensamento pós-abissal pode ser sin-
tetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do
Sul.Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia
de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da plurali-
dade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência
moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem com-
prometer sua autonomia.A ecologia de saberes se baseia na idéia de que
o conhecimento é interconhecimento
49
.
Assim, a primeira condição para um pensamento pós-abissal é a
co-presença radical.A co-presença radical significa que práticas e agen-
tes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos iguali-
tários.Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade,o
que requer abandonar a concepção linear de tempo
50
. Só assim será
possível ir além de Hegel,para quem ser membro da humanidade his-
tórica — isto é,estar deste lado da linha — significava:no século V a.C.,
ser um grego e não um bárbaro;nos primeiros séculos da era cristã,ser
um cidadão romano e não um grego;na Idade Média,ser um cristão e
não um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem do
Novo Mundo;e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeus
deslocados da América do Norte) e não um asiático,estagnado na his-
tória,ou um africano,que sequer faz parte dela
51
.Além disso,a co-pre-
sença radical pressupõe a abolição da guerra, que, juntamente com a
intolerância,constitui a negação mais radical da co-presença.
Como ecologia de saberes,o pensamento pós-abissal tem por pre-
missa a idéia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reco-
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NOVOS ESTUDOS 79
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