tada pelos países centrais no início do
século XX,quando a imaginação epis-
temológica estava dominada pela
idéia de unidade.
[53] Ortega y Gasset, Jose. Ideas y
creencias. Madri: Revista de Occi-
dente,1942.
[54] As epistemologias feministas
têm sido centrais para a crítica dos
dualismos “clássicos” da moderni-
dade, tais como natureza/cultura, su-
jeito/objeto e humano/não-humano,
e da naturalização das hierarquias de
classe, gênero e raça. Para algumas
contribuições relevantes às críticas
feministas da ciência, ver Keller,
Evelyn F. Reflections on gender and
science. New Haven: Yale University
Press, 1985; Harding, Sandra. The
science question in feminism. Ithaca:
Cornell University Press, 1986; Is
science multicultural? Postcolonialisms,
feminisms, and epistemologies. Bloo-
mington: Indiana University Press,
1998; Idem (org.). The feminist stand-
point theory reader. Nova York: Rou-
tledge, 2003; Haraway, Donna J. Pri-
mate visions: gender, race, and nature in
the world of modern science. Londres:
Verso, 1992; Modest_witness [...]:
feminism and technoscience.Nova York:
Routledge, 1997. Uma panorâmica
interessante, ainda que centrada no
Norte global, encontra-se em Crea-
ger, Angela, Lunbeck, Elizabeth e
Schiebinger, Londa (orgs.). Feminism
in twentieth-century: science, techno-
logy, and medicine. Chicago: Univer-
sity of Chicago Press, 2001. Quanto
às epistemologias pós-coloniais, ver,
entre muitos outros, Alvares, Claude.
Science, development and violence: the
revolt against modernity. Nova Déli:
Oxford University Press, 1992; Dus-
sel, The invention of the Americas, op.
cit.;Guha,Ramachandra e Martínez-
Allier, Juan. Varieties of environmenta-
lism: essays North and South. Londres:
Earthscan, 1997; Quijano, op. cit.;
Mignolo,Local histories/global designs,
op.cit.;Mbembe,op.cit.
cem nas práticas cotidianas das populações. O segundo fator é uma
proliferação sem precedentes de alternativas, as quais porém não
podem ser agrupadas sob a alçada de uma única alternativa global,
visto que globalização contra-hegemônica se destaca pela ausência de
uma alternativa no singular.A ecologia de saberes procura dar consis-
tência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo.
Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também igno-
râncias. Não existe uma unidade de conhecimento, assim como não
existe uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tão
heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento.
Dada essa interdependência,a aprendizagem de certos conhecimentos
pode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância de
outros.Desse modo,na ecologia de saberes a ignorância não é necessa-
riamente um estado original ou ponto de partida.Pode ser um ponto de
chegada.Pode ser o resultado do esquecimento ou da desaprendizagem
implícito num processo de aprendizagem recíproca. Assim, num pro-
cesso de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes é crucial
a comparação entre o conhecimento que está sendo aprendido e o
conhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido.A igno-
rância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando aquilo que
se aprende vale mais do que aquilo que se esquece.A utopia do interco-
nhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem esquecer
os próprios.O princípio da prudência que subjaz à ecologia de saberes
(do qual falaremos mais adiante) convida a uma reflexão mais pro-
funda sobre a diferença entre a ciência como conhecimento monopo-
lista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes.
Como produto do pensamento abissal,o conhecimento científico
não se encontra distribuído socialmente de forma equitativa — nem
poderia estar, uma vez que o seu desígnio original foi converter este
lado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto de
conhecimento. As intervenções no mundo real por ele propiciadas
tendem a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhe-
cimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser traçadas, a
luta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas na
idéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico.
Além do fato de que tal distribuição é impossível nas condições do
capitalismo e do colonialismo,o conhecimento científico tem limites
intrínsecos quanto ao tipo de intervenção que promove no mundo
real. Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conheci-
mentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento
científico.Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica.
Trata-se,por um lado,de explorar a pluralidade interna da ciência,isto
é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis por
meio das epistemologias feministas e pós-coloniais
54
, e, por outro
87
NOVOS ESTUDOS 79
❙❙ NOVEMBRO 2007
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[55] Cf. Santos, Meneses e Nunes,
op.cit.
lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes
científicos e outros saberes,não-científicos.
Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos os
conhecimentos têm limites internos, referentes às intervenções no
real que eles permitem,e externos,decorrentes do reconhecimento de
intervenções alternativas propiciadas por outras formas de conheci-
mento. Por definição, as formas de conhecimento hegemônicas só
conhecem limites internos,de modo que o uso contra-hegemônico da
ciência moderna só é possível mediante a exploração paralela de seus
limites internos e externos como parte de uma concepção contra-
hegemônica de ciência. É por isso que o uso contra-hegemônico da
ciência não pode se limitar à ciência.Só faz sentido no âmbito de uma
ecologia de saberes.
Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervenção
no real — não como representação do real — é a medida do realismo.
A credibilidade da construção cognitiva é mensurada pelo tipo de
intervenção no mundo que ela proporciona,auxilia ou impede.Como
a avaliação dessa intervenção sempre combina o cognitivo com o
ético-político, a ecologia de saberes distingue a objetividade analítica
da neutralidade ético-política.Hoje em dia ninguém questiona o valor
geral das intervenções no real propiciadas pela ciência moderna por
meio de sua produtividade tecnológica. Mas isso não deve nos impe-
dir de reconhecer intervenções propiciadas por outras formas de
conhecimento. Em muitas áreas da vida social a ciência moderna tem
demonstrado uma indiscutível superioridade em relação a outras for-
mas de conhecimento, mas há outros modos de intervenção no real
que hoje nos são valiosos e para os quais a ciência moderna em nada
contribuiu. É o caso, por exemplo, da preservação da biodiversidade
possibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas,
que se encontram ameaçadas justamente pela crescente intervenção
da ciência moderna
55
. E não deveria nos impressionar a riqueza dos
conhecimentos que lograram
preservar modos de vida,universos sim-
bólicos e informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis
com base exclusivamente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência o
fato de que por intermédio dela isso nunca teria sido possível?
Eis o impulso para a co-presença igualitária (como simultanei-
dade e contemporaneidade) e para a incompletude. Dado que ne-
nhuma forma de conhecimento pode responder por todas as inter-
venções possíveis no mundo, todas as formas de conhecimento são,
de diferentes maneiras, incompletas. A incompletude não pode ser
erradicada, porque qualquer descrição completa das variedades de
saber não incluiria a forma de saber responsável pela própria descri-
ção. Não há conhecimento que não seja conhecido por alguém para
certos objetivos.Todos os conhecimentos sustentam práticas e cons-
88 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
❙❙
Boaventura de Sousa Santos
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