[56] Cf. Santos,
A crítica da razão
indolente,op.cit.,pp.225-53.
tituem sujeitos. Todos os conhecimentos são testemunhais porque
aquilo que conhecem sobre o real (sua dimensão ativa) é sempre
duplicado por aquilo que dão a conhecer sobre o sujeito do conheci-
mento (sua dimensão subjetiva). Ao questionar a distinção sujeito/
objeto,as ciências da complexidade dão conta desse fenômeno mas o
confinam às práticas científicas. A ecologia de saberes expande o
caráter testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igual-
mente as relações entre o conhecimento científico e o não-científico,
ampliando assim o alcance da intersubjetividade como interconheci-
mento e vice-versa.
Num regime de ecologia de saberes, a busca de intersubjetividade
é tão importante quanto complexa.Uma vez que diferentes práticas de
conhecimento têm lugar em diferentes escalas espaciais e com dife-
rentes durações e ritmos,a intersubjetividade requer a disposição para
conhecer e agir em diferentes escalas (interescalaridade) e com dife-
rentes durações (intertemporalidade).Muitas das experiências subal-
ternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas
irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o
único capaz de gerar experiências globais.Dado porém que a resistên-
cia contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, é
imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiên-
cias subalternas por meio de ligações entre o local e o global. Desse
modo,a ecologia de saberes tem de ser transescalar
56
.
Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou dura-
ções em diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da
moldura temporal. Na medida em que as modernas tecnologias ten-
dem a favorecer a moldura temporal e a duração da ação estatal,tanto na
administração pública como na política (o ciclo eleitoral,por exemplo),
as experiências subalternas do Sul global têm sido forçadas a responder
tanto à curta duração das necessidades imediatas de sobrevivência
como à longa duração do capitalismo e do colonialismo. Mesmo nas
lutas subalternas podem estar presentes diferentes durações. A luta
pela terra empreendida pelos camponeses empobrecidos no Brasil,por
exemplo,pode incluir:a duração do Estado moderno,quando o Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta pela reforma
agrária; a duração da escravatura, quando os afro-descendentes lutam
pela recuperação dos quilombos; ou ainda a duração do colonialismo,
quando os povos indígenas lutam para reaver seus territórios históri-
cos,dos quais foram esbulhados pelos conquistadores.
A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato,
mas como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem
certas intervenções no mundo real.Um pragmatismo epistemológico
é justificado acima de tudo pelo fato de que as experiências de vida dos
oprimidos lhes são inteligíveis por via de uma epistemologia das con-
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NOVOS ESTUDOS 79
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[57] A prevalência dos juízos cogni-
tivos ao efetuar determinada prática
de conhecimento não conflita com a
prevalência dos juízos ético-políticos
na decisão a favor de um determinado
tipo de intervenção real que esse
conhecimento específico possibilita
em detrimento de intervenções alter-
nativas possibilitadas por conheci-
mentos alternativos.
seqüências. No mundo em que vivem, as conseqüências vêm sempre
primeiro que as causas.
A ecologia de saberes assenta na idéia pragmática de que é neces-
sária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na socie-
dade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam.
Centra-se pois nas relações entre saberes, nas hierarquias que se
geram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possí-
vel sem essas hierarquias. No entanto, em vez de subscrever uma
hierarquia única,universal e abstrata entre os saberes,estabelece hie-
rarquias em conformidade com o contexto, à luz dos resultados con-
cretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber.
Hierarquias concretas emergem do valor relativo de intervenções
alternativas no mundo real. Entre os diferentes tipos de intervenção
pode existir complementaridade ou contradição
57
. Sempre que há
intervenções no real que em princípio podem ser levadas a cabo por
diferentes sistemas de conhecimento, as escolhas concretas das for-
mas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princí-
pio da prudência,que no contexto da ecologia de saberes consiste em
dar preferência às formas de conhecimento que garantam a maior
participação possível dos grupos sociais envolvidos na concepção,
execução, controle e fruição da intervenção.
O exemplo a seguir ilustra bem os perigos de substituir um tipo de
conhecimento por outro com base em hierarquias abstratas.Nos anos
1960,os milenares sistemas de irrigação dos campos de arroz da ilha de
Bali,na Indonésia,foram substituídos por sistemas científicos promo-
vidos pelos prosélitos da Revolução Verde.Os sistemas tradicionais se
baseavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiosos
ancestrais e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu-
budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídos
precisamente por serem considerados produtos da magia e da supers-
tição, daquilo que foi depreciativamente designado como “culto do
arroz”.Só que a substituição teve resultados desastrosos para a cultura
do arroz, cuja colheita decresceu drasticamente nos anos subseqüen-
tes.Diante disso,os sistemas científicos tiveram de ser abandonados e
os sistemas tradicionais restaurados.Esse caso ilustra a importância do
princípio da prudência quando lidamos com uma possível comple-
mentaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento.A
suposta incompatibilidade entre dois sistemas de conhecimento (o re-
ligioso e o científico) para a realização da mesma intervenção (a irriga-
ção dos campos de arroz) resultou de uma má avaliação (má ciência)
provocada precisamente por juízos abstratos, baseados na superiori-
dade abstrata do conhecimento científico.Trinta anos depois da desas-
trosa intervenção técnico-científica, a modelagem computacional —
uma área das novas ciências ou ciências da complexidade — veio
90 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
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Boaventura de Sousa Santos
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