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ciência da dialética, aquela que pelo exercício dos diálogos conduz à essência de tudo. Tal
linha de pensamento se vê em Aristóteles mais acentuada, sendo levada ao extremo da lógica
binária do certo (de novo, o claro) ou errado (aqui, toda a gradação modelo, reflexo/imagem e
sombra, sinônimos aristotélicos de obscuridade, engano e ignorância). Assim, tem-se, por um
lado uma filosofia aristotélica de caráter por assim dizer mais realista, que deprime, decanta a
imagem como deturpadora do real, posto que distante da Verdade Absoluta que também
permeará as vertentes do pensamento racionalista ocidental desde a redescoberta e retomada
dos escritos de Aristóteles; e, por outro, as matizes mais brandas lançadas para a imagem no
pensamento do primeiro herdeiro socrático, Platão.
Importa ressaltar que, ainda para Gilbert Durand, esta herança platônica de um olhar
mais matizado para a imagem acabará por reanimar ora e vez o que o filósofo francês chama
de resistências do imaginário ante todo um iconoclasmo que se agigantava, pouco a pouco se
sobrepondo a ele, o imagético, o imaginário; algo mais evidente nas disputas religiosas sobre
a questão da imagem desde o século VIII cristão, mas que, a meu ver, complementando o
caráter mais propriamente material do assunto, também se aplica a todo um iconoclasmo que
abrange ainda o campo das ideias, do pensar, do pensamento, do mental. E, em minha
opinião, está justo nas tramas dessa gradação, justo nessa matização platônica em que
entremetida está a imagem, é justamente aí que inserida está uma espécie de respeito, de
consideração maior pelo imagético, pelo imaginário.
Nesse tocante, um temário ganha relevância na órbita de considerações platônicas
sobre a imagem. Nas palavras de Durand (2011, p.16, grifo meu), “Platão sabe que muitas
verdades escapam à filtragem lógica do método, pois limitam a Razão à antinomia e revelam-
se (...) por uma intuição visionária da alma que a antiguidade grega conhecia muito bem: o
mito”. Sim. O mûthos, que animará a observação aristotélica sobre o filósofo ser também um
philómuthos, é em Platão mais do que “uma reunião de maravilhas” (respeitando-se os dizeres
aristotélicos já mencionados). Desse modo, parece-me complementar tal observação o
argumento de que
[g]raças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para as
verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios do
amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica fala
diretamente à alma (DURAND, 2011, p. 16-7).
Isto exposto, vale pensar na concepção que Durand dá ao mito: “uma intuição
visionária da alma”, unindo, através da utilização do adjetivo “visionária”, certo aspecto
mítico (mais ligado a um passado no qual o mito se origina na tradição oral) a outros dois
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pontos estabelecidos assim pela presentificação contida na figura do sujeito visionário e no
sujeito paciente do que é “visto” e pelo futuro como objeto, ponto final da “visão”, daquilo
que é visualizado ou, em outros termos, “visionarizado”.
No entanto, em meu modo de ver serve ainda inquerir-se sobre o mito desde a
perspectiva apresentada pelo historiador e sociólogo canadense Gérard Bouchard (2005, p.
3,), para quem “o mito (...) deve ser avaliado não na relação com a verdade (a conformidade
com o real), mas na relação com a eficacidade (a capacidade de superar as contradições)”
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.
Aparentemente dicotômicas, vejo ambas as concepções como complementares entre si, as
quais podem dialogar, também de maneira complementária, com outras concepções mais
tradicionais sobre o mito. Entretanto, para além do quão valioso seria aprofundar uma
discussão mais abrangente das concepções, da percepção de relação do mito com a imagem
nas letras (mesmo as que se originam no registro oral), no literário e na filosofia, entendo que,
no presente estudo, tal aprofundamento contribuiria mais como um exercício de erudição do
que propriamente de aporte.
Por conta disso, e por conta do recorte ora proposto neste estudo, apresenta-se como
mais produtivo debruçar-se acerca de como esses campos se mesclam, também, às ciências
nos diálogos socráticos de Platão; ou seja, refletir brevemente sobre o modus operandi da
imagem no texto platônico, na tecedura de suas exposições, algo que virá, enfim, ao encontro
de tópico importante a respeito do trato do imagético na ficção de uma das mostras literárias
(o La frontera de cristal, de Carlos Fuentes) componentes do presente trabalho doutoral.
Passo, então, a tratar; anuncio, assim, que dou vez à abordagem da relevância da metáfora
como recurso linguístico de imagem em um texto, buscando evidenciar abaixo as razões de tal
escolha.
Ainda que o termo “figura” tenha parte de sua significação prontamente aproximada à
noção de imagem (ou à amplitude de suas significações), cogito a compreensão de tropos
como a metáfora, a alegoria, a metonímia, para mais além da categorização gramatical e
linguística de figuras de linguagem ou de palavras. Assim como Aristóteles (Livro III, IV, 1)
primeiro afirma que “a imagem é uma metáfora” para logo em seguida apontar que “entre
uma e outra a diferença é pequena” – deixando escapar ao fim que, sim, existe diferença,
mesmo que pequena, entre ambas, explicando-se pelo uso da comparação (imagem) e da
metáfora propriamente dita –, aponto diferença entre figura e imagem, concernente, baseado
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Tradução de Zilá Bernd (2007).
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