Esquizofonia



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qual nos habituamos", criando "paisagens sonoras" das quais torna-se o 
"elemento integrante incontornável, impregnando as texturas 
musicais"(3). Neste sentido lembramos, num primeiro momento, o 
futurista Luigi Russolo que dizia, em 1913, que desde a invenção da 
máquina, mais precisamente no século XIX, o ruído "triunfa e domina 
soberano sobre a sensibilidade dos homens". E que, a partir daí, "cada vez 
mais a arte musical tem buscado as mais dissonantes e ásperas 
combinações sonoras", preparando assim o ouvinte para o "som-ruído" 
ou "ruído musical".(4)  
Com o advento da música concreta e eletrônica, no final da década de 40, 
os compositores, ao disporem de um campo sonoro aparentemente 
ilimitado em suas possibilidades, começam a buscar uma espécie de 
objetividade em que o som passa a ser primordial e ser tomado tal qual se 
apresenta, deixando de lado suas conotações cotidianas. Verifica-se, 
assim, uma busca pelo som enquanto um fenômeno musical "em si", 
deixando-se de lado todo e qualquer subjetivismo a ele atribuído. Uma 
reviravolta dos princípios estéticos e uma nova atitude face ao som 
começa a se delinear, ainda nas primeiras décadas do século XX, 
provocando uma significativa mudança na história da escuta do homem 
ocidental. Aqueles sons que, outrora, configuravam-se enquanto "pano 
de fundo" - os ruídos ambientais - tornam-se, agora, musicais, colocando 
músicos, sons e ouvintes em trânsito.  
Na década de 70 o compositor canadense Murray Schafer, juntamente 
com músicos e pesquisadores de vários países, inicia estudos sobre o 
relacionamento entre o homem e os sons do ambiente, questionando 
sobre a possibilidade da paisagem sonora do mundo ser uma 
"composição macrocósmica", e nós, seus compositores e responsáveis 
por sua orquestração (5). O fato de vivermos em um mundo 
"visivelmente" sonoro e sermos os responsáveis por essa "composição" 
leva-nos a inferir que a experiência auditiva de paisagens sonoras é 
fundamental, pois pode implicar em uma nova concepção de música e de 
escuta. Ao compreender o desenho da paisagem sonora como um desafio 
composicional, que envolve a todos e, ao aproximar ouvinte e ambiente 
sonoro pela interface da escuta, Schafer reforça uma postura estética, tão 
bem defendida pelo compositor norte americano John Cage, de 
pensarmos uma escuta que torna música aquilo que, por princípio, não é 
música: os sons do ambiente.  
Ao começar a operar sua música utilizando o acaso como critério 
composicional e recusando qualquer predeterminação, Cage nos fala que 
música são "sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas 
de concerto"(6), instigando-nos, desta forma, a abrirmos a janela e 
escutar: Música! É a própria noção de música que se amplia, ou como ele 
mesmo diz:  
“Eu duvido que a gente possa encontrar um objetivo mais alto, ou seja, 
que a arte e nosso envolvimento nela nos introduzam de alguma forma na 
própria vida que estamos vivendo e que então sejamos capazes de, sem 
partituras, sem executantes, simplesmente ficar sentados, escutar os sons 
que nos cercam e ouvi-los como música.”(7) 
Sob essa perspectiva uma outra constatação se faz presente: as barreiras 
entre música e não música e o papel da escuta como algo que constrói e 
se constrói na própria música, e vice-versa, começam a habitar uma certa 
zona sem fronteiras claramente definidas, permitindo-nos pensar em uma 
escuta que compõe.  
Mas o que viria a ser esta escuta que compõe? O que ela compõe e a 
partir do que? Se pensarmos a música, aquela que ouvimos todos os dias, 
como sendo música, não é difícil pensarmos nos padrões de escuta que 


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herdamos das tradições e hábitos. Mas, e se pensarmos em uma situação 
diferente? E se pensarmos nessa "música" que nos rodeia o tempo todo: 
uma "música das ruas"? O que aconteceria com nossos hábitos de escuta: 
escutas estratificadas, dominantes, maiores, condizentes às normas de 
convívio?  
Retornemos a Cage… Ao voltar a atenção ao som, à paisagem e ao 
silêncio, a poética cageana propõe o não musical como musical, 
propiciando a formação de um bloco: som/música. Ou seja, a música na 
paisagem e a paisagem na música.. A música, agora, é retirada do jogo 
seguro e claro da linguagem musical tradicional, ao mesmo tempo em que 
retira o som do pensamento acústico. Ao propor um jogo entre som e 
música, no qual o som tira a música do teritório cálido da linguagem, ao 
mesmo tempo em que, ao se introduzir — territorializado — na 
linguagem, Cage faz transbordar a própria linguagem. E um exemplo disso 
é quando faz soar o silêncio em 4’33".  
Considerada por Daniel Charles como um "dispositivo" criado por Cage 
"para apreensão do mundo" - um "enquadramento temporal"(8) -, esta 
obra é um exemplo daquilo que recorre a uma "poiética de escuta" (9), 
onde o ato de escutar constitui-se também em um ato de compor. O 
ouvinte compõe segundo as condições dadas pelo ambiente e pelo 
compositor: em 4’33" Cage dá o silêncio frente a um instrumentista 
inerte; o silêncio sendo o som do ambiente que será revelado pela 
escuta.. A música evocada por esse "dispositivo" consiste, justamente, em 
escutar as sonoridades e as qualidades particulares desses sons, 
produzidas ao acaso, através desse "enquadramento". Para Cage, do 
mesmo modo que as coisas que nos acontecem diariamente transformam 
nossa experiência - nosso "ver", nosso "ouvir" -, ao prestarmos atenção 
em uma música distante da tradição, nossa atenção para as coisas que 
nos rodeiam - "coisas para ouvir, coisas para ver"(10) - será mudada. 
Alimentando esta música de sons cotidianos, de ilhas de silêncio, dar-se-á, 
então, uma espécie de "enquadramento do cotidiano".  
Se esta obra levou Cage a mudar sua mente no sentido de começar a 
apreciar todos aqueles sons que ele não compõe, possibilitando-lhe 
descobrir que "essa peça é a que está acontecendo a todo momento"(11), 
também nos possibilita refletir sobre uma outra noção de música que 
começa a se delinear, confundindo-se com a de "paisagem sonora". Esse 
jogo envolve alguns padrões dominantes de escuta, um hábito de escuta 
musical e um hábito de escuta de paisagens que, quando contrapostos, 
transformam um em dominante frente ao outro, que passa a ser o jogo de 
uma minoria. Ouvir música como se fosse paisagem implica tanto em tirar 
a música de seu território seguro, quanto correr o risco de submetê-la aos 
padrões da paisagem, o mesmo podendo ser dito da situação inversa.. 
Ouvir uma paisagem como música pode tanto desmontar os hábitos da 
escuta cotidiana, quanto correr o risco de submeter a paisagem às regras 
da escuta musical: a "forma sonata" da paisagem, ou a "forma sonata" 
dos sons dos carros que se cruzam em uma esquina qualquer.  
Contudo, no jogo entre som e música, proposto pela poética cageana, 
onde se faz soar o "silêncio", aquilo que era ausência de som, totalmente 
conceitual, passa a ser um acontecimento sonoro: silêncio = sons do 
ambiente. Cage torna sempre potente o "sem nome", aquilo que é 
inabarcável e, ao introduzir apenas "caos", provoca uma 
desterritorialização da própria escuta que de receptora passa a ser 
construtora.. A poética cageana, ao se abster de determinar, "a priori", a 
relação entre os sons, recusando-se a expressar o que quer que seja por 
meio do recorte da ligação entre os sons, não visa nem exprimir alguma 
coisa, nem realizar uma estrutura formal. O que Cage faz, enquanto 
compositor, é inventar uma situação estética na qual os materiais são 
apresentados de maneira crua, ou seja, os sons não são trabalhados pela 


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