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Somos nômades, pois nos deixamos desterritorializar a todo momento
pelo caos, pelas linhas de força que nos puxam, nos empurram, nos
deslocam a todo momento; tiram-nos os pontos fixos, deixando apenas as
linhas... como um viajante que atravessa o Sahara. E, até mesmo na
cidade, pressuposta como um espaço estriado por excelência, cheia de
referências, de pontos fixos, vislumbra-se um espaço liso, como o deserto,
que, sendo liso, deixa-se estriar. Na cidade / paisagem sonora, a escuta
"perderá todo ponto de referência e todo conhecimento absoluto de
intervalos, comparável ao olho que deve presumir as distâncias em uma
superfície idealmente polida" (24). Na "música das ruas" a escuta que a
compõe cria um jogo que não se restringe ao liso como que fugindo ao
estriado, mas que simplesmente flui, passando de um modo a outro, em
suas operações de estriagem e de alisamento. Escuta! O trajeto a
mobiliza.
Notas:
1. Vale ressaltar que ao falar em paisagem sonora, estamos nos referindo
ao termo soundscape, criado pelo compositor canadense Schafer, como
analogia a landscape e que diz respeito a qualquer ambiente sonoro.
Neste estudo, o ambiente ambiente sonoro ao qual nos referimos, é o
nosso cotidiano: os sons do dia-a-dia, os sons das ruas.
2. Estamos chamando de ruído, tomando, neste momento, a definição
dada por Wisnik, em seu livro O som e o sentido. O autor diz ser o ruído
um som formado por feixes de defasagens "arrítmicas" e instáveis, e que,
sob a ótica da teoria da infomação, é um som que, ao provocar uma
"desordenação interferente", torna-se "um elemento virtualmente
criativo, desorganizador de mensagens/códigos cristalizados, e
provocador de novas linguagens". WISNIK, José Miguel. O som e o
sentido. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 29-30.
3. Ibidem, p. 42.
4. RUSSOLO, Luigi. The art of noises. London: Pendragon Press, 1983. p.
23.
5. SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991. p. 289.
6. SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Edunesp, 1991. p.
120.
7. CAGE, John. De segunda a um ano. São Paulo: Hucitec, 1985. p. 42.
8. CHARLES, Daniel apud SHONO, Susumo. “Une poïétique d`écoute”.
Revue D`Esthétique, Toulouse, n.13-14-15, p. 453, 1987, 1988.
9. A idéia de "poiética de escuta" subentende, segundo o musicólogo
Susumo Shono, um ato individual, que visa encontrar as qualidades únicas
e insubstituíveis do som, as suas singularidades, não tendo nenhuma
relação com o desejo de apreender o objeto pela análise. SHONO,
Susumo. “Une poïetique d`écoute”. op. cit., p. 454.
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10. KOSTELANETZ, Richard. Conversing with Cage. New York: Omnibus
Press, 1989. p. 212.
11. LOPES, Rodrigo Garcia. Vozes e visões: panorama da arte e cultura
norte-americanas hoje. São Paulo: Iluminuras, 1996. p. 101.
12. Essa idéia aparece na obra de Cage em suas diversas facetas, ao
imaginar um outro espaço tanto para o compositor, quanto para o
intérprete e para o ouvinte.
13. A idéia de "música flutuante", em contraposição a uma "música de
funções", é apresentada por Mireille Buydens, em seu livro Sahara:
l¿ésthétique de Gilles Deleuze. Vale dizer que a posição da autora está
apoiada em idéias do compositor francês Daniel Charles, que não apenas
forja diversos conceitos deleuzeanos, em La musique et l'oubli, como
também cruza tais conceitos com idéias composicionais de John Cage.
Paris: J. Vrin, 1990. p. 146.
14. Ibidem, p. 160.
15. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. São Paulo: ed. 34, 1997, v. 4, p.
15-16.
16. Ao falar de tempo ou espaço liso e estriado, vale ressaltar que Deleuze
está tomando para si os conceitos criados no campo musical pelo
compositor Pierre Boulez, que distinguira dois espaços musicais: o
estriado e o liso, que transpostos para o domínio do tempo resultavam
respectivamente, na idéia de um tempo pulsado, implicando em
estriagem métrica, e o tempo não pulsado, liso, caracterizado pela
ausência de pulsação. Vale-se dessa idéia, acoplando liso e estriado em
um bloco de devir e retirando-a do domínio da música. Ver DELEUZE, G.;
GUATARRI, F. Mil platôs, v. 5, p. 184.
17. Ibidem, p. 185.
18. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v.5, p. 50.
19. Ibidem, p. 50.
20. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs . op. cit., v. 5, p. 50-51.
21. MILOVANOFF, Anny apud DELEUZE, p. 51.
22. Ibidem, p. 51.
23. O trabalho "Listen" foi um dos primeiros desenvolvidos por esse
músico percussionista, a partir de sua preocupação estética em relação
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aos sons da rua. Propõe uma atitude inversa: ao invés de trazer esses sons
para dentro das salas de concertos, leva a platéia para fora das salas, para
apreciá-los "in loco", criando uma verdadeira interação com a vida diária.
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24. BUYDENS, Mireille. Sahara. op. cit., p. 149.
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