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ficção de La frontera de cristal, vê-se encarregada por Dinorah
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, trazida pelo texto-rio, de
cruzar a ponte fronteiriça que separa Ciudad Juárez, Chihuahua, de El Paso, Texas,
conduzindo
[u]na anciana muy pequeña (…) ilegible bajo el palimpsesto de las arrugas infinitas
que cruzan su cara como el mapa de un país para siempre perdido, se la encargó la
Dinorah, lleva a mi abuelita del otro lado del puente, Marina, entrégasela en el otro
lado a mi tío Ricardo, él no quiere entrar otra vez a México, ya no sabe hablar
español, le da pena, le da miedo también, que luego no lo dejen entrar de regreso,
lleva a mi abuelita al otro lado del río grande, río bravo, para que mi tío se la lleve
de vuelta a Chicago, ella sólo vino a consolarme por la muerte del niño, ella sola no
se sabe valer, y no sólo porque tiene casi cien años, sino porque lleva tanto tiempo
viviendo como mexicana en Chicago que desde hace tiempo se le olvidó el español
pero nunca aprendió el inglés, de modo que no puede comunicarse con nadie
(FUENTES, 2007, p. 278 – grifo do texto em itálico).
E, ato contínuo, completa a abordagem fuentesiana sobre a questão de trauma nos não
ditos, agora tripartida na projeção ficcional do caso relatado de Martín Ramírez (em El espejo
enterrado) para as figuras do tio e da avó da personagem Dinorah, o adendo de que essa
avozinha não tinha mais como comunicar-se com ninguém,
[s]alvo con el tiempo, salvo con la noche, salvo con el olvido, salvo con los perros
ixcuintles y las guacamayas, salvo con las papayas que toca en el mercado y los
coyotes que la visitan cada amanecer, salvo con los sueños que no puede platicarle
a nadie, salvo con la inmensa reserva de lo no dicho hoy para que pueda decirse
mañana (Ibid. – grifo do texto em itálico).
Rememorando a afirmação do texto de apresentação de uma das primeiras edições
do romance ora estudado, a qual diz que “em La Frontera de cristal Carlos Fuentes é o
mesmo narrador de seus melhores livros” (tradução minha), as comparações feitas até aqui
visaram demonstrar a constatação de que, ao fim e ao cabo, Fuentes termina por projetar no
narrador de sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense traços compositivos de seu
próprio discurso, principalmente os que nele se sobressaem (os quais procurei destacar no
desenvolvimento deste tópico) enquanto ensaísta, orador e palestrante
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. O ensaio é um
gênero literário mais marcadamente autoral, ou seja, mais aberto a marcas de autoria, sendo
por isso menos impessoal que outros gêneros de escrita científica e de maior rigor acadêmico.
Tal impessoalidade dele, Fuentes, no ensaio, vê-se manifestada, deixa-se transparecer na
figura do narrador que elege para contar a ficção de La frontera de cristal.
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Amiga de Marina e mãe solteira que havia perdido um filho enforcado na própria corda em que a mãe lhe
deixava preso para ir trabalhar nas montadoras do lado juarense (México) da fronteira com El Paso (EUA).
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Sua produção intelectual não se limita a esses gêneros, avançando ainda sobre o teatro, a composição de
roteiros para o cinema e de artigos acadêmicos e para jornais e revistas de expressiva notoriedade; além da
concessão de inúmeras entrevistas, em muitas das quais deixou transparecer a mesma sedutora fluência verbal, a
mesma habilidade para com o uso das palavras e desfile de seus argumentos que demonstra no material
escolhido como recorte comparativo para a composição do presente tópico.
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Assim, pode-se dizer que Fuentes não é o narrador de La frontera por conhecimento
de causa. Ele é o narrador por conhecimento da causa (do tema que ficcionaliza e, ato
contínuo, da causa chicana), ancorado em e respaldado pela abordagem da temática de seu
romance já em uma mostra de ensaios anterior; precursora, portanto, do trato ficcional de sua
posterior reunião de contos acerca das relações de alteridade que fervilham do e no entorno
fronteiriço fraturado, compartido, e ainda “disputado” pelos Estados Unidos Mexicanos e
pelos Estados Unidos da América.
Com respeito à narratividade coiote, enfoque da argumentação por mim levantada
nesse tópico, não pretendo com o uso do termo que ele dê conta de ou mesmo venha a ser
considerado como um conceito ou mesmo uma teoria que abranja mostras literárias que
toquem no mesmo tema levantado por Fuentes em sua ficção. Salvo o caso de leituras
vindouras que porventura identifiquem a mesma possibilidade de interpretação em outras
obras com temática semelhante, a narratividade coiote se apresenta aqui como uma associação
bastante cabível para as interposições verificadas de um Fuentes ensaísta a um “Fuentes
narrador” e, por conseguinte, para as posições falsamente veladas, assumidas por esse mesmo
narrador em La frontera de cristal. A esse respeito, um retorno ao artigo “El baile del Señor
del Monte”, já citado por mim na presente tese, traz-nos de volta o que contou o antropólogo
mexicano Gonzalo Camacho Díaz, quem nas andanças de suas investigações era
frequentemente tido como um estranho, um forasteiro, sendo, por essa razão, visto como um
coiote, um simples coyotl (Cf. DÍAZ, 2011, p. 130 – grifo do autor, tradução minha).
Incidindo, pois, diretamente na figura do narrador do seu La frontera, Fuentes passa a
ser também a própria representação desse estranho, desse forasteiro, no melhor sentido
existente desde a definição sartriana para o intelectual (Cf. SARTRE, 1972, p. 9), esse
intrometido que se imiscui a tratar de assuntos que a princípio não lhe dizem respeito. Assim
é que Fuentes, dispondo de meios, dispositivos e artifícios literários que toda sua bagagem
intelectual lhe permite usar, insere seu narrador coiote à categoria do narrador não confiável,
nada confiável. Parece ilustrar bem tal situação, a irônica passagem que seu narrador atribui a
um pensamento da personagem Dionisio “Baco” Rangel, um chef de cozinha mexicano de
muito sucesso nos Estados Unidos, no conto “El despojo”, terceiro capítulo de La frontera. A
Dionisio o narrador atribui a seguinte “reflexão”:
Había millones de trabajadores mexicanos en los Estados Unidos y treinta millones
de personas, en los Estados Unidos, hablaban español. ¿Cuántos mexicanos, en
cambio, hablaban correctamente el inglés? Dionisio sólo conocía a dos, Jorge
Castañeda y Carlos Fuentes, y por eso estos dos sujetos le parecían sospechosos.
(FUENTES, [1995] 2007, p. 65)
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