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A alegoria, pelo contrário, demanda uma elaboração que não colabora com a noção,
com a característica de todo compactado, de um todo fingido – todo, porém, com ares de real
–, que sugere o imaginário, um imaginário, na falsa impressão de todo que um imaginário
sugere. Enquanto o imaginário prefere o todo (ou o que ele finge ser um todo), daí sua relação
estrita com a metáfora e a metonímia, não só literária bem como discursiva de um modo mais
amplo; tornando ao anterior: enquanto o imaginário elege, prefere o todo – sendo, na verdade,
uma apreensão desse mesmo todo sobre o qual se insere –, a alegoria esmiúça a parte,
dificultando sua apreensão por imaginários.
Dados os argumentos anteriores, cabe, então, o retorno à metáfora da fronteira de
cristal, que, plantada, insistida, pouco a pouco desenvolvida, vai configurando-se em uma
ampla metáfora, fruto de um amplo processo, por ora ainda iniciando-se, de metaforização.
Ainda em “La capitalina”, esse processo tem prosseguimento quando da cerimônia do
casamento de Michelina Laborde com Marianito Barroso. Ali, nosso narrador coiote traz
pensamentos de doña Lucila para o evento, pensando menos em seu filho e entusiasmando-se
mais com a festa e com o poder que representava seu marido, quem estendia seu influxo e
autoridade por:
Tierras, aduanas, fraccionamientos, la riqueza y el poder que dan control de una
frontera ilusoria, de cristal, porosa, por donde circulan cada año millones de
personas, ideas, mercancías, todo (en voz baja, contrabando, estupefacientes, billetes
falsos…) ¿Quién no tenía que ver con, o dependía de, o aspiraba a servir a don
Leonardo Barroso, zar de la frontera norte? (FUENTES, [1995] 2007, p. 30)
Na citação acima, há o retorno, o reforço da metáfora do cristal para a fronteira, dessa
feita apoiado na sugestão de imagem, de sensação de porosidade, algo que escapa pelos dedos
feito a areia do deserto que separa ambos os lados da linha fronteiriça. No entanto, sobressai,
com o adendo de que se se refere à fronteira norte, o lado mexicano, a carga sobre uma
situação de pobreza de muitos, e de servidão e dependência de poucos a exploradores como
don Barroso.
Ou seja, ao lado da metáfora chave há toda uma descrição de teor hiponímico,
quando a associação entre nomes própria da metonímia vai da substituição da parte pelo todo.
E é esse uso proximal entre metáfora e metonímia pela narrativa que aproxima essa mesma
narrativa da concepção ou coadunação de pré-conceitos, neste caso, bastante depreciativos, e
agora já em sequência na narrativa, próprios do corpo de um imaginário. Tal relação entre
ambos esses tropos do discurso, os quais às vezes também se confundem, dificultando a
diferenciação entre eles, será alvo inda maior de minha abordagem com respeito à correlação
dos recursos de imagem utilizados em La frontera e a formação e perpetuação de imaginários.
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Entretanto, por agora, sigo chamando a atenção para essa primeira, e talvez principal,
metáfora do enredo.
Por certo a repetição da expressão “fronteira de cristal” também corresponde a um ato
de justificar, de explicar por esse meio o porquê ou os porquês do título dado ao romance.
Porém, é a meu ver mais que isso, como venho demonstrando, e quando se percebe na leitura
que tal insistência avança, metáfora ampla adentro do texto. E, no que se refere à metáfora
principal do enredo, ela prosseguirá em “La capitalina”, até o final desse primeiro conto.
Nessa passagem final, contudo, uma alusão à outra metáfora se destaca, revelando o uso de
uma imagem sobre outra imagem, compondo, ainda, com a imagem maior da metáfora chave,
agora já amplamente repetida, porquanto enfim metáfora ampla, a metáfora principal dentro
de todo o processo de metaforização impresso pela escrita literária no conto, a fim de dar
passagem ao imagético em que se ancora o narrado.
Quando o sonho barroco de “Sor” Michelina (desde o qual teci comentários no
segmento anterior sobre a narratividade coiote na obra), na Cidade do México, encontra pelas
palavras desse mesmo narrador coiote os sonhos de um agônico Marianito, em Campazas, a
narrativa nos leva a um segundo sonho onde o rapaz, em sua timidez, é feito metáfora de uma
lebre, “un cuadrúpedo salvaje de orejas largas y cola corta” (FUENTES, [1995] 2007, p. 28).
Desse animal, diz-se também na narrativa que
Sus patas son más largas que las del conejo. Corre muy rápido porque es muy
tímido.
No hurga como otros de su especie: anida, busca un espacio estable, tibio, respetado,
donde lo dejen estar.
Es mamífero. Nace de la leche, la desea de vuelta, quiere mamar en la oscuridad, ser
mamado, en un nido, sin sobresaltos, sin nadie que le observe gozar… (FUENTES,
[1995] 2007, p. 28)
A metaforização se dá, completa-se, então – segundo a narrativa que busca aqui, mais
que simples transferência, uma coincidência de sentidos –, na personalidade descrita de
Marianito, para quem
No había una sola mujer en el mundo que soportara su deseo. Mariano sólo quería
vivir (…), físicamente, donde siempre vivió en la voluntad y vivió siempre en el
espíritu. En una ranchería. (…) Solo, porque no había una sola mujer en el mundo
que eclipsara todo el espacio, salvo la recámara donde el espacio y la presencia
coincidían (FUENTES, [1995] 2007, p. 28)
Essa metaforização que traz como eixo a figura do quadrúpede lebre é um sonho que,
como visto, antecede o casamento do jovem com Michelina. E ele ainda pensa nela,
indagando-se se ela seria essa mulher a respeitar enfim sua solidão. Haja vista o desfecho do
capítulo, ela, sim, respeita seu desejo, quando, em passagem que marca o retorno da metáfora
principal do enredo, aqui já uma metáfora ampla, na tarde seguinte à manhã da cerimônia, a
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