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confundam com a mesma qualidade demonstrada nas frases assumidamente dele, narrador,
usadas em descrições, ou em passagens das descrições anteriores.
Entra-se assim em uma terceira linha de correspondências, na qual coincidem o
narrador (incluindo-se aqui as vozes supostamente por ele recuperadas) e o autor, na mesma
fluência poética, de sedutora prosa poética que deixa transparecer a grande fluência verbal do
próprio escritor Carlos Fuentes. Não se trata aqui da mera e comum, por vezes até aceitável e
compreensível (outras nem tanto, porque ingênua), dificuldade de dissociação leitora e
investigativa entre autor e narrador. Não. Na verdade, o “x” dessa observação está no verbo
usado linhas acima: “transparecer”. A obra em destaque está longe de aproximar-se
(minimamente que seja) de uma autoficção ou autobiografia. Mas, analisado o percurso
literário do autor e as linhas desde as quais buscou dar vez a suas reflexões intelectuais, a
narratividade adotada em seu La frontera de cristal permite, sim, aproximar o narrador que
ele utiliza como fruto de uma espécie de “autobibliografia”, ou talvez melhor ficasse dizer,
como fruto de um exercício de “autobibliografia”, uma consulta, revisão e devido tratamento
literário da bibliografia (em especial a ensaística) que o próprio autor compôs durante anos,
através de suas publicações.
Desse modo, ao recorrer a essa autobibliografia, ao dar vazão a este exercício, Fuentes
deixa transparecer em seu narrador seu próprio verbo autoral. Nela, na figura de seu narrador,
deixa que se manifeste (e “manifestar-se” é também sinônimo para “transparecer”) sua
fluência sedutora, seu dom, sua sensibilidade pessoal para a palavra, para o trato da e com a
palavra, a língua, as línguas, suas variáveis, suas vertentes, seus diferentes registros e
variantes, através dos quais, dada sua capacidade de absorção e transformação de sua vasta
genealogia literária e investigativa, passeiam com técnica, habilidade e domínio de normas e
burlas ele e seu narrador. E é justamente tal sagacidade, tamanha astúcia que permitem
aproximar (sem que teoria seja) a técnica narrativa posta em prática em sua ficção sobre a
fronteira mexicano-estadunidense a uma narratividade coiote, porquanto nela se faça lembrar
e se veja mimetizada uma das ações principais do coiote: a busca do convencimento, pelo
fingimento, de que nele se pode ter toda confianza
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para atravessar a(s) fronteira(s) até o
sonho do eldorado na União Americana.
Serve ainda para atestar e ratificar os argumentos ora apresentados a voz enunciativa
adotada por Fuentes na condução de ambas as versões do seu El espejo enterrado. Na série
homônima feita para a televisão sobressai uma enunciativa de ordem mais narrativa, um
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Expressão de uso bastante comum na zona fronteiriça entre El Paso e Ciudad Juárez.
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caráter mais narrativo em que ganha importância, além, é claro, do valor das informações e
conclusões prestadas e passadas ao telespectador, toda uma “performática” fuentesiana de
gesticulações, de falar também com as mãos e com expressões faciais para atrapar, seduzir,
convencer e manter esse espectador junto a si. Enquanto isso, a versão para a série, publicada
em livro, recebe contornos mais argumentativos próprios do e para o ensaio escrito. Buscar,
pois, na lembrança e/ou na consulta este Fuentes narrador de seus argumentos em El espejo
enterrado é revê-lo transparecido, transluzido, manifestado no narrador que elege para a
ficção de seu La frontera de cristal.
Não é fortuito, portanto, que conste da sinopse de uma das primeiras edições da obra a
seguinte abertura:
En La frontera de cristal, Carlos Fuentes es el mismo narrador de sus mejores
libros: agresivo, vital, poderoso. Encuentra todos los ángulos posibles en una
historia, con una variante insospechada: la comicidad, que ahora lleva al lector a la
carcajada franca con algunas de sus páginas más memorables, no por ágiles menos
penetrantes y agudas (Alfaguarra, 1996).
Eis assim uma das chaves dessa exposição acerca da narrativa fuentesiana: Fuentes como
narrador de seus livros. Quer dizer, implica diretamente muitas vezes em suas narrativas
ficcionais toda a carga de conhecimento adquirido (em suas leituras, em suas vivências),
pensado, trabalhado, discutido, argumentado e difundido por suas obras de caráter mais
próximo do teórico-reflexivo. Por conseguinte, implica diretamente sobre determinados
narradores seus muito da linguagem adotada pelo próprio Fuentes em gêneros aos quais
normalmente se atribui uma pretensa maior objetividade (ainda que, nesse aspecto, o ensaio
seja um gênero por assim dizer mais “livre”, no que diz respeito ao tratamento de suas fontes
e à objetividade no produto-texto empregada; sendo, nesse sentido, menos fechado que um
artigo acadêmico, por exemplo).
Tornando o olhar para La frontera de cristal, vale ressaltar que a comicidade desse
Fuentes narrador, tocada na citação acima, já se vê de certa forma anunciada na primeira
descrição dedicada à personagem Michelina Laborde. Um retorno a essa citação e se pode
observar que, para o elogio a Michelina (“esos huesos perfectos de las beldades de México a
las que el tiempo parece no afectar”), com a sequência imediata em “Rostros perfectos para la
muerte, añadió el galán”; enfim, para o elogio contido em ambas as sentenças, o mesmo
narrador que atribui tais palavras a um galanteador francês logo tece um complemento digno
do que se convencionou chamar como típico de um humor inglês, comicidade repousada em
leve ironia. Assim, para “Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán” esse narrador que
lembra o próprio Fuentes sentencia “y eso ya no le gustó a Michelina”. Esse humor
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