Totem e tabu



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Por último, deve-se levar em conta o fato de que uma proibição contra a endogamia, baseada em motivos práticos de higiene, com fundamento na sua tendência à debilitação racial, parece inteiramente inadequada para explicar a profunda aversão de nossa sociedade pelo incesto. Como já demonstrei anteriormente, esse sentimento parece ser ainda mais ativo e intenso entre os povos primitivos contemporâneos que entre os civilizados.

Poder-se-ia esperar que aqui, mais uma vez, tivéssemos diante de nós uma escolha entre explicações sociológicas, biológicas e psicológicas. (Com relação a isto, os motivos psicológicos talvez devam ser considerados como representando forças biológicas.) Não obstante, ao fim de nossa investigação, pode mos apenas endossar a conclusão resignada de Frazer. Ignoramos a origem do horror ao incesto e nem mesmo podemos informar em que direção procurá-la. Nenhuma das soluções que foram propostas ao enigma parece satisfatória.

Tenho, entretanto, de mencionar uma outra tentativa de solucioná-lo. É de um tipo inteiramente diferente de qualquer uma que até aqui consideramos e poderia ser descrita como ‘histórica’.

Essa tentativa baseia-se numa hipótese de Charles Darwin sobre o estado social dos homens primitivos. Deduziu ele dos hábitos dos símios superiores, que também o homem vivia originalmente em grupos ou hordas relativamente pequenos, dentro dos quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia a promiscuidade sexual. ‘Podemos na verdade concluir, do que sabemos do ciúme de todos os quadrúpedes masculinos, armados, como muitos se acham, de armas especiais para bater-se com os rivais, que as relações sexuais promíscuas em um estado natural são extremamente improváveis (…) Dessa maneira, se olharmos bastante para trás na corrente do tempo (…) a julgar pelos hábitos sociais do homem, tal como ele hoje existe (…) a visão mais provável é que o homem primevo vivia originalmente em pequenas comunidades, cada um com tantas esposas quantas podia sustentar e obter, as quais zelosamente guardava contra todos os outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com diversas esposas, como o gorila, pois todos os antigos “concordam que apenas um macho adulto é visto num grupo; quando o macho novo cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como chefe da comunidade”. (Dr. Savage, no Boston Journal of Nat. Hist., vol. V, 1845-7, p. 423.) Os machos mais novos, sendo assim expulsos e forçados a vaguear por outros lugares, quando por fim conseguiam encontrar uma companheira, preveniram também uma endogamia muito estreita dentro dos limites da mesma família.’ (Darwin, 1871, 2, 362 e seg.)

Atkinson parece ter sido o primeiro a perceber que a conseqüência prática das condições reinantes na horda primeva de Darwin deve ter sido a exogamia para os jovens do sexo masculino. Cada um deles poderia, depois de ter sido expulso, estabelecer uma horda semelhante, na qual a mesma proibição sobre as relações sexuais imperaria, por causa do ciúme do líder. Com o decorrer do tempo, isto produziria o que se tornaria uma lei consciente: ‘Nenhuma relação sexual entre os que partilham de um lar comum’. Após o estabelecimento do totemismo, a regra assumiria outra forma e diria: ‘Nenhuma relação sexual dentro do totem’.

Andrew Lang (1905, 114 e 143) aceitou esta explicação da exogamia. No mesmo livro, contudo, defende outra teoria (sustentada por Durkheim), de acordo com a qual a exogamia foi uma resultante das leis totêmicas. [Cf. p. 126.] É um pouco difícil conciliar esses dois pontos de vista: de acordo com o primeiro, a exogamia se teria originado antes do totemismo, enquanto que, segundo o último, dele se derivaria.


(3)
Nessa obscuridade, um raio de luz isolado é lançado pela observação psicanalítica.

Há uma grande semelhança entre as relações das crianças e dos homens primitivos com os animais. As crianças não demonstram sinais da arrogância que faz com que os homens civilizados adultos tracem uma linha rígida entre a sua própria natureza e a de todos os outros animais. As crianças não têm escrúpulos em permitir que os animais se classifiquem como seu plenos iguais. Desinibidas como são na admissão de suas necessidades corporais, sem dúvida sentem-se mais aparentadas com os animais do que com seus semelhantes mais velhos, que bem podem constituir um mistério para elas.

Não raramente, porém, uma estranha lenda ocorre nas excelentes relações existentes entre as crianças e os animais. Uma criança de repente começa a ter medo de uma determinada espécie de animal e a evitar tocar ou ver qualquer exemplar daquela espécie. Surge o quadro clínico de uma fobia de animal — uma forma muito comum, talvez a mais antiga, das doenças psiconeuróticas que ocorrem na infância. Via de regra, a fobia está ligada a animais pelos quais a criança até então tinha mostrado um interesse particularmente vivo e nada tem a ver com qualquer animal em particular. Não existe uma grande escolha de animais que possam tornar-se objetos de fobia para crianças que vivem em cidades: cavalos, cães, gatos, com menos freqüência pássaros, e, com notável freqüência, bichos muito pequenos, como besouros e borboletas. O medo insensato e imoderado mostrado nessas fobias está às vezes ligado a animais que a criança só conhece de livros de figuras e contos de fadas. Em algumas raras ocasiões, é possível descobrir o que levou a uma escolha desse tipo tão fora do comum e sou grato a Karl Abraham por me ter contado um caso em que a própria criança explicou que seu medo de vespas era porque a cor e as listras faziam-na lembrar-se de tigres, que, segundo todos os relatos, constituíam animais a serem temidos.

Ainda não se fez nenhum exame analítico pormenorizado das fobias de animais em crianças, embora esse estudo fosse grandemente compensador. Essa negligência, deve-se, sem dúvida, à dificuldade de analisar crianças de tão tenra idade. Assim, não se pode dizer que conheçamos o significado geral dessas perturbações, e eu mesmo sou de opinião que estas podem mostrar não ser de natureza uniforme. Mas alguns casos de fobias desse tipo dirigidas no sentido de animais maiores mostraram-se acessíveis à análise e revelaram assim seu segredo ao investigador. Era a mesma coisa em todos os casos: quando as crianças em causa eram meninos, o medo, no fundo, estava relacionado com o pai e havia simplesmente sido deslocado para o animal.

Qualquer pessoa com experiência psicanalítica sem dúvida alguma já encontrou casos desse tipo e teve deles a mesma impressão. Entretanto, posso citar apenas umas poucas publicações pormenorizadas sobre o assunto. Esta pobreza de literatura é uma circunstância acidental e não se deve supor que nossas conclusões se fundamentem em umas poucas observações esparsas. Posso citar, por exemplo, um autor que estudou as neuroses da infância com grande compreensão, o Dr. M. Wulff, de Odessa. No relato da história clínica de um menino de nove anos, ele conta que, aos quatro anos, o paciente sofrera de uma cinofobia. ‘Quando via passar um cão correndo na rua, chorava e gritava: “Cachorrinho querido, não me morda! Eu vou ser bonzinho!”. Por “ser bonzinho” queria dizer “não mexer no pipi”, ou seja, não se masturbar. (Wulff, 1912, 15.) ‘A fobia de cachorro do menino’, explica o autor, ‘era na realidade o medo do pai deslocado para os cães; pois sua curiosa exclamação “Cachorrinho, eu vou ser bonzinho!” — isto é, “não me masturbarei” — dirigia-se ao pai, que o havia proibido de ser masturbar.’ Wulff acrescenta uma nota de rodapé que está totalmente de acordo com minhas opiniões e, ao mesmo tempo, dá testemunho da freqüente ocorrência de tais experiências: ‘Fobias desse tipo (fobias de cavalos, cães, gatos, aves e outros animais domésticos) são, em minha opinião, pelo menos tão comuns na infância quanto o pavor nocturnus e, na análise, quase invariavelmente mostram ser um deslocamento para os animais do medo que a criança tem de um dos genitores. Não estou preparado para afirmar que o mesmo mecanismo se aplica às disseminadas fobias de ratos e camundongos.’ [Ibid., 15.]

Publiquei recentemente (1909b), uma ‘Análise de uma Fobia num Menino de Cinco Anos’, cujo material me foi fornecido pelo pai do pequeno paciente. O menino tinha uma fobia de cavalos e, como conseqüência disso, recusava-se a sair à rua. Expressava o temor de que o cavalo entrasse no quarto e o mordesse e viu-se que isso seria o castigo por um desejo de que o cavalo caísse (isto é, morresse). Depois de ter sido removido o medo do menino pelo pai através de uma confiança renovada, tornou-se evidente que ele estava lutando contra desejos que tinham como tema a idéia de o pai estar ausente (partindo para uma viagem, morrendo). Encarava o pai (como deixou bem claro) como um competidor nos favores da mãe, para quem eram dirigidos os obscuros prenúncios de seus desejos sexuais nascentes. Desse modo, estava situado na atitude típica de uma criança do sexo masculino para com os pais a que demos o nome do ‘complexo de Édipo’ e que em geral consideramos como o complexo nuclear das neuroses. O fato novo que aprendemos com a análise do ‘pequeno Hans’ — fato com uma importante relação com o totemismo — foi que, em tais circunstâncias, as crianças deslocam alguns de seus sentimentos do pai para um animal.

A análise pode reconstituir os caminhos associativos ao longo dos quais esse deslocamento se passa — tanto os fortuitos como os possuidores de um conteúdo significativo. A análise também nos permite descobrir os motivos do deslocamento. O ódio pelo pai que surge num menino por causa da rivalidade em relação à mãe não é capaz de adquirir uma soberania absoluta sobre a mente da criança; tem de lutar contra a afeição e admiração de longa data pela mesma pessoa. A criança se alivia do conflito que surge dessa atitude emocional de duplo aspecto, ambivalente, para com o pai deslocando seus sentimentos hostis e temerosos para um substituto daquele. O deslocamento, no entanto, não pode dar cabo do conflito, não pode efetuar uma nítida separação entre os sentimentos afetuosos e os hostis. Pelo contrário, o conflito é retomado em relação ao objeto para o qual foi feito o deslocamento: a ambivalência é estendida a ele. Não pode haver dúvida de que o pequeno Hans não apenas tinha medo de cavalos, mas também se aproximava deles com admiração e interesse. Assim que sua ansiedade começou a diminuir, identificou-se com a criatura temida: começou a pinotear como um cavalo e, por sua vez, mordeu o pai. Em outra etapa da resolução de sua fobia, não hesitou em identificar os pais com alguns outros animais de grande porte.

Pode-se com justiça dizer que nessas fobias de crianças reaparecem algumas das características do totemismo, mas invertidas para o negativo. Devemos, entretanto, a Ferenczi (1913a) uma interessante história de um caso isolado que só pode ser descrito como um exemplo de totemismo positivo numa criança. É verdade que no caso do pequeno Árpád (sujeito da comunicação de Ferenczi), seus interesses totêmicos não surgiram em relação direta com o complexo de Édipo, e sim baseados em sua pré-condição narcisista, o temor da castração. Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um inimigo temível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira.

Quando o pequeno Árpád tinha dois anos e meio de idade, tentara certa vez, nas férias de verão, urinar no galinheiro e uma galinha: bicara ou dera uma bicada na direção de seu pênis. Um ano depois, quando de volta ao mesmo lugar, ele próprio transformou-se numa galinha: seu único interesse era o galinheiro e o que lá se passava, tendo trocado o falar humano por cacarejos e cocoricós. Na ocasião em que a observação foi feita (quando estava com cinco anos), tinha recobrado a fala, mas seus interesses e sua conversa relacionavam-se totalmente com galinhas e outros tipos de aves domésticas. Eram os seus únicos brinquedos e somente entoava cantigas que fizessem menção a aves de quintal. Sua atitude para com o animal totêmico era superativamente ambivalente: mostrava tanto ódio quanto amor num grau exorbitante. Seu jogo favorito era brincar de matar galinhas. ‘A matança de aves domésticas constituía para ele um festival regular. Dançava em volta dos corpos dos animais por horas a fio, num estado de intensa excitação.’ A seguir, porém, beijava e alisava o animal morto ou limpava e acariciava as aves de brinquedo que ele mesmo tinha maltratado.

O próprio pequeno Árpád cuidou para que o significado de seu estranho comportamento não permanecesse oculto. De tempos em tempos, traduzia seus desejos, da linguagem totêmica para a da vida cotidiana. ‘Meu pai é galo’, disse em certa ocasião, e, noutra: ‘Agora sou pequeno, sou um frango. Quando ficar maior, serei uma galinha e quando for maior ainda, serei um galo.’ Em outra ocasião, disse subitamente que gostaria de comer um pouco de ‘fricassée de mãe’ (por analogia com o fricassée de frango). [Ibid., 249.] Era muito generoso em ameaçar outras pessoas com a castração, tal como ele próprio fora por ela ameaçado, por causa das atividades masturbatórias.

Não há dúvida ,segundo Ferenczi, quanto às fontes do interesse de Árpád nos acontecimentos do galinheiro: ‘a contínua atividade sexual entre galos e galinhas, a postura de ovos e o nascimento da nova ninhada’ gratificavam a sua curiosidade sexual, cujo objeto real era a vida familiar humana. [Ibid. 250.] Mostrou ter formado sua própria escolha de objetos sexuais segundo o modelo da vida no galinheiro, porque certo dia disse à esposa do vizinho: ‘Vou me casar com você, com sua irmã, minhas três primas e com a cozinheira; não, com a cozinheira, não; em vez dela, casarei com minha mãe.’ [Ibid., 252.]

Mais tarde poderemos apreciar mais completamente o valor desta observação. De momento, enfatizarei apenas dois aspectos dela que oferecem valiosos pontos de concordância com o totemismo: a completa identificação do menino com seu animal totêmico e sua atitude emocional ambivalente para com este. Essas observações, em minha opinião, justificam nossa substituição desse animal pelo pai na fórmula do totemismo (no caso de indivíduos do sexo masculino). Vai-se observar que não há nada de novo ou particularmente ousado nesse passo à frente. Na verdade, os homens primitivos dizem a mesma coisa e, onde o sistema totêmico ainda se acha em vigor atualmente, descrevem o totem como sendo seu ancestral comum e pai primevo. Tudo o que fizemos foi tomar no sentido literal uma expressão utilizada por essas pessoas, da qual os antropólogos muito pouco souberam extrair e, por essa razão, contentaram-se em manter em segundo plano. A psicanálise, pelo contrário, leva-nos a dar uma ênfase especial ao mesmo ponto e tomá-lo como ponto de partida de nossa tentativa de explicar o totemismo.

A primeira conseqüência de nossa substituição é notabilíssima. Se o animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do totemismo, as duas proibições de tabu que constituem seu âmago — não matar o totem e não ter relações sexuais com os dois crimes de Édipo, que matou o pai e casou com a mãe, assim como os dois desejos primários das crianças, cuja repressão insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses. Se essa equação for algo mais que um enganador truque de sorte, deverá capacitar-nos a lançar luz sobre a origem do totemismo num passado inconcebivelmente remoto. Em outras palavras, nos permitirá provar que o sistema totêmico — como a fobia de animal do pequeno Hans e a perversão galinácea do pequeno Árpád — é um produto das condições em jogo no complexo de Édipo. A fim de verificar esta possibilidade, teremos, nas páginas seguintes de estudar uma característica do sistema totêmico (ou, como poderíamos dizer, da religião totêmica) que até aqui mal tive oportunidade de mencionar.
(4)
William Robertson Smith, falecido em 1894 — físico, filólogo, crítico da Bíblia e arqueólogo — era um homem de muitos interesses, de visão clara e espírito liberal. Em seu livro sobre a Religion of Semites (publicado pela primeira vez em 1889), apresentou a hipótese de que uma cerimônia peculiar conhecida como ‘refeição totêmica’ fizera, desde o princípio, parte integrante do sistema totêmico. Naquela ocasião, possuía apenas uma prova para apoiar sua teoria: um relato de um procedimento da espécie datado do século V. Mas através de uma análise da natureza do sacrifício entre os antigos semitas pôde emprestar à sua hipótese um alto grau de probabilidade. Desde que o sacrifício implica uma divindade, era uma questão apenas de argumentar a partir de uma fase relativamente elevada do ritual religioso para a mais baixa delas, ou seja, o totemismo.

Tentarei agora extrair da admirável obra de Robertson Smith aquelas suas afirmações sobre a origem e o significado do ritual de sacrifício que são de interesse decisivo para nós. Assim procedendo, tenho de omitir todos os pormenores, muitas vezes fascinantes, e deixar de lado todos os desenvolvimentos posteriores. É inteiramente impossível num resumo como este dar aos leitores uma idéia que seja da lucidez e força convincente do original.

Robertson Smith [1894, 213] explica o sacrifício no altar como a característica essencial do ritual das antigas religiões. Ele desempenha o mesmo papel em todas as religiões, de maneira que sua origem deve ser remontada a causas muito gerais, operando em toda a parte da mesma maneira. O sacrifício entretanto — o ato sagrado par excellence (sacrificium, ) — tinha originalmente um significado um tanto diferente do posterior, que é fazer uma oferenda à deidade, a fim de propiciá-la ou ganhar o seu favor. (O emprego não religioso da palavra decorreu desse sentido subsidiário de ‘renúncia’. [Ver adiante, em [1]) Pode-se demonstrar que, inicialmente, o sacrifício nada mais era que ‘um ato de companheirismo entre a divindade e seus adoradores’. [Ibid., 224.]

Os produtos oferecidos em sacrifício eram coisas que podiam ser comidas ou bebidas; os homens sacrificavam às suas divindades as coisas de que eles próprios viviam: carne, cereais, frutas, vinho e óleo. Somente no caso da carne havia limitações e exceções. O deus partilhava os sacrifícios animais com os seus adoradores, mas as oferendas vegetais eram apenas dele. Não há dúvida de que os sacrifícios animais foram os mais antigos e, originalmente, os únicos. Os sacrifícios vegetais surgiram da oferenda das primeiras frutas e sua natureza era um tributo ao senhor da terra e dos campos; mas os sacrifícios animais são mais antigos que a agricultura. [Ibid., 222.]

Reminiscência lingüísticas comprovam que a parte do sacrifício atribuída ao deus era a princípio considerada como sendo, literalmente, o seu alimento. À medida que a natureza dos deuses tornava-se progressivamente menos material, essa concepção transformou-se num empecilho e foi evitada, atribuindo-se à deidade apenas a parte líquida da refeição. Posteriormente, o uso do fogo, que fez com que a carne do sacrifício sobre os altares se elevasse em fumaça, forneceu um método de lidar com o alimento humano mais apropriado à natureza divina. [Ibid., 224, 229.] A oferenda de bebida consistia originalmente no sangue da vítima animal, substituído mais tarde por vinho. Nos tempos antigos, o vinho era considerado ‘o sangue da uva’ e foi assim descrito por poetas modernos. [Ibid., 230.]

A forma mais antiga de sacrifício, mais do que o uso do fogo ou o conhecimento da agricultura, foi então o sacrifício de animais, cuja carne e sangue eram desfrutados em comum pelo deus e por seus adoradores. Era essencial que cada um dos participantes tivesse a sua parte da refeição.

Um sacrifício dessa espécie era uma cerimônia pública, um festival celebrado por todo o clã. A religião em geral era assunto da comunidade e o dever religioso fazia parte das obrigações sociais. Em todos os lugares o sacrifício envolvia um festim e um festim não podia ser celebrado sem um sacrifício. O festim sacrificatório era uma ocasião em que os indivíduos passavam alegremente por cima dos seus próprios interesses e acentuavam a dependência mútua existente entre eles e o seu deus. [Ibid., 255.]

A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em idéias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas. O que era diretamente expressado pela refeição sacrificatória era apenas o fato de o deus e seus adoradores serem ‘comensais’, mas todos os outros pontos de suas relações mútuas estavam incluídos nisto. Costumes ainda em vigor entre os árabes do deserto demonstram que o vínculo numa refeição comum não é um fator religioso, mas o próprio ato de comer. Qualquer pessoa que tenha comido o menor pedaço de alimento com um desses beduínos ou tomado um gole de leite não mais precisa temê-lo como inimigo, mas pode sentir-se seguro de sua proteção e auxílio, porém, não por um tempo ilimitado; estritamente falando, apenas enquanto a comida que ingeriram em comum permaneça no corpo. Essa era a visão realista do laço de união. Precisava de repetição para ser confirmado e se tornar permanente. [Ibid., 269-70.]

Mas por que essa força de união é atribuída ao comer e beber juntos? Nas sociedades primitivas havia apenas uma espécie de laço que era absoluto e inviolável: o do parentesco. A solidariedade desse companheirismo era completa. ‘Um parentesco era um grupo de pessoas cujas vidas se achavam tão ligadas, no que deve ser chamado de unidades físicas, que podiam ser tratadas como partes de uma vida comum (…) Num caso de homicídio, os homens das tribos árabes não dizem “O sangue de A ou B foi derramado”, nomeando a pessoa; mas sim “Nosso sangue foi derramado”. Em hebraico, a expressão pela qual se alega o parentesco é: “Sou seus ossos e sua carne”.’ Assim, o parentesco implica a participação numa substância comum. Desse modo, é natural que não se baseie simplesmente no ato de um homem ser uma parte da substância de sua mãe, tendo nascido dela e sido nutrido com o seu leite, mas que possa ser adquirido e fortalecido pela comida que um homem ingere mais tarde e com a qual seu corpo se renova. Se um homem partilhava uma refeição com seu deus, estava expressando a convicção de que eram feitos de uma só substância; e nunca a partilharia com quem considerasse um estranho. [Ibid., 273-5.]

A refeição sacrificatória, então, foi em princípio um festim de parentes, de acordo com a lei de que apenas parentes comem juntos. Em nossa própria sociedade, os membros de uma família fazem suas refeições em comum, mas a refeição sacrificatória não tem relação com a família. O parentesco é algo mais antigo que a vida familiar e, na maioria da sociedades primitivas que nos são conhecidas, a família continha membros de mais de um parentesco. O homem casava-se com uma mulher de outro clã e os filhos herdavam o clã da mãe, de maneira que não havia comunhão de parentesco entre o homem e os outros membros da família. Numa família desse tipo, não havia refeição comum. Até os dias de hoje, os selvagens comem isolados e a sós e as proibições religiosas de comida do totemismo freqüentemente tornam-lhes impossível comer em comum com a esposa e os filhos. [Ibid., 277-8.]

Voltemo-nos agora para o animal sacrificatório. Como soubemos, não há reunião de um clã sem um sacrifício animal, nem — e isto agora se torna significativo — nenhuma matança de animal exceto nessas ocasiões cerimoniais. Embora a caça e o leite dos animais domésticos possam ser consumidos sem quaisquer receios, os escrúpulos religiosos tornam impossível matar um animal doméstico para fins privados. [Ibid. 280, 281.] Não pode haver a mais leve dúvida, diz Robertson Smith, de que a matança de uma vítima se achava originalmente entre os atos que ‘são ilegais para um indivíduo e só podem ser justificados quando todo o clã partilha a responsabilidade do ato. Até onde sei, há apenas uma classe de ações reconhecidas pelas nações primitivas a que essa descrição se aplica, a saber, as ações que envolvem a invasão da santidade no sangue tribal. Na verdade, uma vida que nenhum integrante isolado da tribo se permite invadir e que só pode ser sacrificada pelo consentimento e ação comum dos parentes, está em pé de igualdade com a vida dos companheiros de tribo’. A regra de que todo participante na refeição sacrificatória tenha de comer uma parte da carne da vítima tem o mesmo significado da determinação de que a execução de um membro culpado da tribo deve ser efetuada pela tribo como um todo. [Ibid., 284-5.] Noutras palavras, o animal sacrificado era tratado como um membro da tribo; a comunidade sacrificante, o deus e o animal sacrificado eram do mesmo sangue e membros de um só clã.
Robertson Smith apresenta provas abundantes para identificar o animal sacrificatório com o primitivo animal totêmico. Na antiguidade mais remota, havia duas classes de sacrifício: uma em que as vítimas eram animais domésticos das espécies habitualmente utilizadas para a alimentação e a outra, sacrifícios extraordinários de animais impuros e cujo consumo era proibido. A investigação mostra que esses animais impuros eram animais sagrados, que eles eram oferecidos como sacrifício aos deuses a quem eram consagrados, que originalmente eram idênticos aos próprios deuses e que, por meio do sacrifício, os adoradores de certa maneira enfatizavam seu parentesco consangüíneo com o animal e o deus. [Ibid., 290-5.] Mas em épocas ainda mais antigas, essa distinção entre sacrifícios comuns e ‘místicos’ desaparece. Originalmente, todos os animais [sacrificatórios] eram sagrados, sua carne era proibida e só podia ser consumida em ocasiões cerimoniais e com a participação de todo o clã. A matança de um animal [desse tipo] equivalia ao derramamento do sangue tribal e só podia ocorrer sujeita às mesmas precauções e às mesmas garantias contra a incorrência em censuras. [Ibid., 312, 313.]

A domesticação dos animais e a introdução da criação de gado parece ter dado fim em toda parte ao totemismo estrito e inadulterado dos dias primevos. Mas esse caráter sagrado, tal como continuou sendo para os animais domésticos sob o que então se tornou uma religião ‘pastoral’ é suficientemente óbvio para permitir-nos deduzir sua natureza totêmica original. Mesmo em fins da época clássica, o ritual prescrevia em muitos lugares que o sacerdote sacrificante devia fugir depois de efetuar o sacrifício, como se para escapar à represália. A idéia de que matar bois constituía um crime deve, em determinada época, ter predominado na Grécia em geral. No festival ateniense da Bufônia [‘morte do boi’], um processo regular era instituído após o sacrifício e todos os participantes eram convocados como testemunhas. Ao final, concordava-se que a responsabilidade pelo crime deveria ser atribuída à faca e, por conseguinte, esta era jogada ao mar. [Smith, 1894, 304.]

A despeito da proibição que protegia a vida dos animais sagrados na qualidade de companheiros de clã, surgiu a necessidade de matar um deles de tempos em tempos, em comunhão solene, e de dividir sua carne e sangue entre os membros do clã. Os motivos que levaram a esse ato revelam o significado mais profundo da natureza do sacrifício. Já sabemos como, em épocas posteriores, sempre que o alimento é comido em comum, a participação na mesma substância estabelece um laço sagrado entre aqueles que a consomem quando o alimento penetrou em seus corpos. Nos tempos antigos, esse resultado parece só ter sido efetivado pela participação na substância de uma vítima sacrossanta. O sagrado mistério da morte sacrificatória‘é justificado pela consideração de que apenas desta maneira pode ser conseguido o vínculo sagrado que cria e mantém ativo um elo vivo de união entre os adoradores e seu deus.’. (Ibid., 313.)

Este elo ou vínculo nada mais é que a vida do animal sacrificatório, a qual reside em sua carne e seu sangue, sendo distribuída entre todos os participantes na refeição sacrificatória. Uma idéia desse tipo jaz na raiz de todos os pactos de sangue por meio dos quais os homens fizeram convênios uns com os outros, mesmo em períodos posteriores da história. [Loc. cit.] Essa maneira completamente literal de encarar o parentesco de sangue como identidade de substância torna fácil compreender a necessidade de renová-lo de tempos em tempos pelo processo físico da refeição sacrificatória. [Ibid., 319.]

Aqui interrompo o seguimento da linha de pensamento de Robertson Smith e passo a renunciar o essencial dela em termos mais concisos. Com o estabelecimento da idéia de propriedade privada, o sacrifício veio a ser considerado uma doação à divindade, uma transferência da propriedade dos homens para o deus. Mas essa interpretação deixa inexplicada todas as peculiaridades do ritual do sacrifício. Nos tempos mais remotos, o próprio animal sacrificatório fora sagrado e sua vida intocável; só podia ser morto se todos os membros do clã participassem da morte e partilhassem da culpa na presença do deus de maneira que a substância sagrada pudesse ser produzida e consumida pelos membros do clã, garantindo assim sua identidade uns com os outros e com a divindade. O sacrifício constituía um sacramento e o próprio animal sacrificado era membro do clã. Era de fato o antigo animal totêmico, o próprio deus primitivo, através de cuja morte e consumo os integrantes do clã renovavam e asseguravam sua semelhança com ele.

Dessa análise da natureza do sacrifício, Robertson Smith tira a conclusão de que a morte e a ingestão periódicas do totem em tempos anteriores à adoração de deidades antropomórficas constituiu um elemento importante da religião totêmica. [Ibid., 295.] O cerimonial de uma refeição totêmica dessa espécie, sugere ele, pode ser encontrado na descrição de um sacrifício de data comparativamente posterior. São Nilo registra um ritual sacrificatório corrente entre os beduínos do deserto do Sinai em fins do século IV. A vítima do sacrifício, um camelo, ‘é amarrado a um grosseiro altar de pedras empilhadas e o líder do grupo, depois de conduzir por três vezes os adoradores em volta do altar numa solene procissão acompanhada de cantos, inflige o primeiro ferimento (…) e, com toda a pressa, bebe o sangue que jorra. Imediatamente, todos os acompanhantes caem sobre a vítima com suas espadas recortando pedaços da carne palpitante e devorando-os crus com pressa tão selvagem que, no curto intervalo que vai do nascer da estrela matutina o qual assinalou a hora para o serviço começar — ao desaparecimento de seus raios ante o sol nascente, todo o camelo, corpo e ossos, pele, sangue e entranhas, é inteiramente devorado.’ [Ibid., 338.] Todas as provas tendem a mostrar que esse ritual bárbaro, que apresenta todos os sinais de extrema antiguidade, não era um caso isolado, e sim, em toda parte, a forma original assumida pelo sacrifício totêmico embora mais tarde atenuada em muitos sentidos diferentes.

Muitas autoridades recusaram-se a atribuir importância ao conceito da refeição totêmica, porque não era apoiado por nenhuma observação direta ao nível do totemismo. O próprio Robertson Smith apontou casos em que a significação sacramental do sacrifício aparecia assegurada: por exemplo, os sacrifícios humanos dos aztecas e outros, que lembram as circunstâncias da refeição totêmica — o sacrifício dos ursos pelo clã urso dos ouataouak [Otawa] da América e o festim do urso de Ainos, no Japão. [Ibid., 295n.] Esses casos e outros semelhantes foram relatados em pormenores por Frazer na Quinta Parte de sua grande obra (1912, 2 [Caps. X, XIII, XIV]). Uma tribo índia americana da Califórnia, que venera uma grande ave de rapina (um abutre), mata-a uma vez por ano num festival solene, após o qual é pranteado e sua pele e penas são preservadas. [Ibid., 2, 170.]. Os índios zunis do Novo México comportam-se de maneira semelhante em relação às suas tartarugas sagradas. [Ibid. 2, 175.]

Foi observada nas cerimônias intichiuma das tribos centro-australianas uma característica que concorda admiravelmente com as conjeturas de Robertson Smith. Cada clã, quando está realizando mágicas para a multiplicação do totem (o qual normalmente é proibido de ser consumido), é obrigado, durante a cerimônia, a comer uma pequena parte do próprio totem, antes de torná-lo acessível aos outros clãs. [Frazer, 1910, 1, 110 e segs.]. De acordo com Frazer (ibid., 2, 590) o exemplo mais claro do consumo sacramental de um totem, proibido em outras circunstâncias, pode ser encontrado entre os binis da África Ocidental, em conexão com suas cerimônias fúnebres.

Por conseguinte, proponho que adotemos a hipótese de Robertson Smith de que a matança sacramental e a ingestão comunal do totem animal, cujo consumo era proibido em todas as outras ocasiões, constituía uma característica importante da religião totêmica.
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Vamos agora evocar o espetáculo de uma refeição totêmica do tipo que estivemos estudando, ampliada por alguns prováveis aspectos que ainda não pudemos considerar. O clã se acha celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de seu animal totêmico e está devorando-o cru — sangue, carne e ossos. Os membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança do totem e imitando-o em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua identidade com ele. Cada homem se acha consciente de que está executando um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todo o clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança e da refeição. Quando termina, o animal morto é lamentado e pranteado. O luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada. Como Robertson Smith (1894, 412) observa em relação a uma ocasião análoga, seu objetivo principal é renegar a responsabilidade pela matança.

Mas o luto é seguido por demonstrações de regozijo festivo: todos os instintos são liberados e há permissão para qualquer tipo de gratificação. Encontramos aqui um fácil acesso à compreensão da natureza dos festivais em geral. Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição. Não é que os homens cometam os excessos porque se sentem felizes em conseqüência de alguma injunção que receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido.

Que dizer, todavia, do prelúdio desta alegria festiva — a luta pela morte do animal? Se os membros do clã se alegram pela morte do totem — ato normalmente proibido — por que o pranteiam também?

Como vimos, os integrantes do clã, consumindo o totem, adquirem santidade; reforçam sua identificação com ele e uns com os outros. Seus sentimentos festivos e tudo que deles decorre bem poderia ser explicado pelo fato de terem incorporado a si próprios a vida sagrada de que a substância do totem constitui o veículo.

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva — com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta freqüência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai.

Se, agora, reunirmos a interpretação psicanalítica do totem com o fato da refeição totêmica e com as teorias darwinianas do estado primitivo da sociedade humana, surge a possibilidade de uma compreensão mais profunda — um vislumbre de uma hipótese que pode parecer fantástica, mas que oferece a vantagem de estabelecer uma correlação insuspeita entre grupos de fenômenos que até aqui estiveram desligados.

Naturalmente, não há lugar para os primórdios do totemismo na horda primeva de Darwin. Tudo o que aí encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem. Esse estado primitivo da sociedade nunca foi objeto de observação. O tipo mais primitivo de organização que realmente encontramos — que ainda se acha em vigor, até os dias de hoje, em certas tribos — consiste em grupos de machos; esses grupos são compostos de membros com direitos iguais e estão sujeitos às restrições do sistema totêmico, inclusive a herança através da mãe. Poderia essa forma de organização ter-se desenvolvido a partir da outra? E, se assim foi, ao longo de que linhas?

Se chamarmos a celebração da refeição totêmica em nosso auxílio, poderemos encontrar uma resposta. Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força superior.) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.



A fim de que estas últimas conseqüências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo — pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esse tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava.
Os dois tabus do totemismo com que a moralidade humana teve o seu começo não estão psicologicamente no mesmo nível. O primeiro deles, a lei que protege o animal totêmico, fundamenta-se inteiramente em motivos emocionais: o pai fora realmente eliminado e, em nenhum sentido real, o ato podia ser desfeito. Mas a segunda norma, a proibição do incesto, tem também uma poderosa base prática. Os desejos sexuais não unem os homens, mas os dividem. Embora os irmãos se tivessem reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. Cada um quereria, como o pai, ter todas as mulheres para si. A nova organização terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles tinha força tão predominante a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos — talvez somente depois de terem passado por muitas crises perigosas —, do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai. Dessa maneira, salvaram a organização que os tornara fortes — e que pode ter-se baseado em sentimentos e atos homossexuais, originados talvez durante o período da expulsão da horda. Aqui também pode ser encontrado o germe da instituição do matriarcado, descrita por Bachofen [1861] que foi, por sua vez, substituída pela organização patriarcal da família.

Por outro lado, a pretensão de ser o totemismo considerado como uma primeira tentativa de religião baseia-se no primeiro desses dois tabus: o referente a tirar a vida do animal totêmico. O animal impressionou os filhos como um substituto natural e óbvio do pai; mas o tratamento que se impuseram dar a ele expressava mais do que a necessidade de exibir o remorso. Podiam tentar, na relação com esse pai substituto, apaziguar o causticante sentimento de culpa, provocar uma espécie de reconciliação com o pai. O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este prometia-lhes tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai — proteção, cuidado e indulgência — enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida, isto é, não repetir o ato que causara a destruição do pai real. O totemismo, além disso, continha uma tentativa de autojustificação: ‘Se nosso pai nos houvesse tratado da maneira que o totem nos trata, nunca nos teríamos sentido tentados a matá-lo.’ Desta maneira, o totemismo ajudou a amenizar a situação e tornou possível esquecer o acontecimento a que devia sua origem.

Foram assim criadas características que daí por diante continuaram a ter uma influência determinante sobre a natureza da religião. A religião totêmica surgiu do sentimento filial de culpa, num esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que fora adiada. Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. Variam de acordo com o estágio de civilização em que surgiram e com os métodos que adotam; mas todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a civilização começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso.

Há outra característica que já se encontrava presente no totemismo e que foi preservada inalterada na religião. A tensão da ambivalência era evidentemente grande demais para qualquer artifício poder neutralizá-la; ou é possível que as condições psicológicas em geral sejam desfavoráveis aos indivíduos se verem livres dessas emoções antitéticas. Seja o que for, descobrimos que a ambivalência implícita no complexo-pai persiste geralmente no totemismo e nas religiões. A religião totêmica não apenas compreendia expressões de remorso e tentativas de expiação, mas também servia como recordação do triunfo sobre o pai. A satisfação por esse triunfo levou à instituição do festival rememorativo da refeição totêmica, no qual as restrições da obediência adiada não mais se mantêm. Assim, tornou-se um dever repetir o crime de parricídio muitas vezes, através do sacrifício do animal totêmico, sempre que, em conseqüência das condições mutantes da vida, o fruto acalentado do crime — a apropriação dos atributos paternos — ameaçava desaparecer. Não nos surpreenderá descobrir que o elemento da rebeldia filial também surge nos produtos posteriores da religião, freqüentemente sob os mais estranhos disfarces e transformações.

Até aqui acompanhamos os desenvolvimentos da corrente afetuosa de sentimentos para com o pai, transformada em remorso, tal como os encontramos na religião e nas ordenações morais (que, no totemismo, não se distinguem nitidamente). Mas não devemos subestimar o fato de que, em geral, a vitória ficou foi com os impulsos que levaram ao parricídio. Por muito tempo depois, os sentimentos fraternais sociais, que constituíram a base de toda a transformação, continuaram a exercer uma profunda influência no desenvolvimento da sociedade. Encontraram expressão na santificação do laço de sangue, na ênfase dada à solidariedade por toda a vida dentro do mesmo clã. Garantindo assim a vida uns dos outros, os irmãos estavam declarando que nenhum deles devia ser tratado por outro como o pai fora tratado por todos em conjunto. Estavam evitando a possibilidade de uma repetição do destino do pai. À proibição, baseada na religião, contra a morte do totem juntou-se então a proibição socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a proibição deixou de limitar-se aos membros do clã e assumiu a forma simples: ‘Não matarás.’ A horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consangüíneo. A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum; a religião baseava-se no sentimento de culpa e no remorso a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa.

Assim a psicanálise, em contradição com as opiniões mais recentes sobre o sistema totêmico, mas em concordância com as mais antigas, exige de nós admitir que o totemismo e a exogamia estavam intimamente ligados e tiveram uma origem simultânea.


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Grande número de poderosos motivos impede-me de qualquer tentativa de esboçar o desenvolvimento ulterior das religiões, desde a origem no totemismo até a condição atual. Seguirei apenas duas linhas cujo curso posso traçar com especial clareza enquanto correm em meio ao desenho; o tema do sacrifício totêmico e a relação de filho para pai.

Robertson Smith mostrou-nos que a antiga refeição totêmica repete-se sob a forma original de sacrifício. O significado do ato é o mesmo: santificação por meio da participação numa refeição comum. O sentimento de culpa, que só pode ser aliviado pela solidariedade de todos os participantes, persiste também. O que é novo é a divindade do clã, em cuja suposta presença o sacrifício é executado, que participa da refeição como se fosse um membro do clã e com quem aqueles que consomem se tornam identificados. Como veio o deus a colocar-se numa situação à qual era originalmente estranho?

A resposta poderia ser que, nesse meio tempo, surgiu — de alguma fonte desconhecida — o conceito de Deus assumindo o controle de toda a vida religiosa; e que, como tudo o mais que quisesse sobreviver, a refeição totêmica foi obrigada a encontrar um ponto de contato com o novo sistema. A psicanálise dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado. Como no caso do totemismo, a psicanálise recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de ancestral tribal. Se a psicanálise merece alguma atenção, então — sem prejuízo de quaisquer outras fontes ou significados do conceito de Deus, sobre os quais não pode lançar luz — o elemento paterno nesse conceito deve ser um elemento muito importante. Mas, nesse caso, o pai é representado duas vezes na situação do sacrifício primitivo: uma vez como Deus e outra como a vítima animal totêmica. E, mesmo pressupondo o número restrito de explicações aberto à psicanálise, tem-se de perguntar se isto é possível e que sentido pode ter.

Sabemos existir uma multiplicidade de relações entre o deus e o animal sagrado (o totem ou a vítima sacrificatória). (1) Cada deus geralmente possui um animal (e muito freqüentemente diversos animais) que lhe é consagrado. (2) No caso de certos sacrifícios especialmente sagrados — os sacrifícios ‘místicos’ — a vítima era exatamente o animal consagrado ao deus (Smith, 1894 [290]). (3) O deus era freqüentemente adorado sob a forma de um animal (ou, encarando o fato de outra maneira, os animais eram adorados como deuses), muito tempo após a época do totemismo. (4) Nos mitos, o deus muitas vezes se transforma em animal e, com freqüência, no animal que lhe é consagrado.

Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana. Uma nova criação como esta, derivada do que constitui a raiz de toda forma de religião — a saudade do pai — poderia ocorrer se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se houvesse efetuado na relação do homem com o pai e, talvez, também na sua relação com os animais.

Sinais da ocorrência de modificações dessa espécie podem ser facilmente percebidos, mesmo se deixarmos de lado o começo de um afastamento afetivo dos animais e a desagregação do totemismo devida à domesticação. (Ver atrás, em [1] e segs.) Houve, no estado de coisas, um fator produzido pela eliminação do pai que estava destinado, com o decorrer do tempo, a provocar um enorme aumento na saudade que dele sentiam. Cada um dos irmãos que se tinham agrupado com o propósito de matar o pai estava inspirado pelo desejo de tornar-se semelhante a ele e dera expressão ao mesmo incorporando partes do representante paterno na refeição totêmica. Entretanto, em conseqüência da pressão exercida sobre cada participante pelo clã fraterno como um todo, esse desejo não pôde ser realizado. De futuro, ninguém poderia nem tentaria atingir o poder supremo do pai, ainda que isso fosse o objetivo pelo qual todos tinham-se empenhado. Assim, após um longo lapso de tempo, o azedume contra o pai, que os havia impulsionado à ação, tornou-se menor e a saudade dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele. Em conseqüência de mudanças culturais decisivas, a igualdade democrática original que havia predominado entre os membros do clã tornou-se insustentável e desenvolveu-se ao mesmo tempo uma inclinação, baseada na veneração sentida por determinados seres humanos, a reviver o antigo ideal através da criação de deuses. A noção de um homem que se torna deus ou de um deus que morre nos impressiona hoje como chocantemente presunçosa, mas, mesmo na antiguidade clássica, nada havia de revoltante nela. A elevação do pai que fora outrora assassinado à condição de um deus de quem o clã alegava descender constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do que fora o antigo pacto com o totem.

Não posso sugerir em que ponto deste processo de evolução é possível encontrar lugar para as grandes deusas-mães, que podem talvez em geral ter precedido os deuses-pais. Parece certo, contudo, que a mudança na atitude para com o pai não se restringiu à esfera da religião, mas se estendeu de maneira harmônica àquele outro lado da vida humana que fora afetado pela eliminação do pai — à organização social. Com a introdução das divindades paternas, uma sociedade sem pai gradualmente transformou-se numa sociedade organizada em base patriarcal. A família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais uma grande parte de seus antigos direitos. Mais uma vez apareceram pais, mas as conquistas sociais do clã fraterno não foram abandonadas; e a distância existente entre os novos pais de uma família e o irrefreado pai primevo da horda era suficientemente grande para garantir a continuidade do anseio religioso, a persistência de uma saudade não apaziguada do pai.

Vemos então que, na cena do sacrifício perante o deus do clã, pai é, na realidade duas vezes — como o deus e como a vítima animal totêmica. Entretanto, em nossas tentativas de compreensão dessa situação, devemos ter cuidado com as interpretações que procuram traduzi-la de maneira bidimensional, como se fosse uma alegoria, e para que, assim procedendo, não nos esquecemos de sua estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados cronologicamente sucessivos da cena. A atitude ambivalente para com o pai encontrou nela uma expressão plástica e assim também a vitória das emoções afetuosas do filho sobre as hostis. A cena da sujeição do pai, de sua maior derrota, tornou-se o estofo da representação de seu triunfo supremo. A importância que em toda parte, sem exceção, é atribuída ao sacrifício reside no fato de ele oferecer satisfações ao pai pelo ultraje que lhe foi infligido no mesmo ato em que aquele feito é comemorado.

À medida que o tempo foi passando, o animal perdeu seu caráter sagrado e o sacrifício, sua vinculação com o festim totêmico; tornou-se uma simples oferenda à divindade, um ato de renúncia em favor do deus. O próprio Deus foi sendo exaltado tão acima da humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se dele através de um intermediário — o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio. Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da sociedade e do sentimento de culpa. Mas há, nesta última representação do sacrifício, um significado que é inequívoco. Ele expressa a satisfação pelo primitivo representante paterno ter sido abandonado em favor do conceito superior de Deus. Neste ponto, a interpretação psicanalítica da cena coincide aproximadamente com a tradução alegórica e superficial dela, que representa o deus a vencer o lado animal de sua própria natureza.
Não obstante, seria um equívoco supor que os impulsos hostis inerentes ao complexo-pai foram completamente silenciados durante esse período de autoridade paterna revivida. Pelo contrário, as primeiras fases da dominância dos dois novos representantes paternos [—] deuses e reis [—] apresentam os mais vigorosos sinais da ambivalência que continua sendo uma das características da religião.

Em sua grande obra, The Golden Bough, Frazer [1911a, 2, Cap. XVIII] apresenta o ponto de vista de que os primeiros reis das tribos latinas foram estrangeiros que desempenhavam o papel de um deus e eram solenemente executados num determinado festival. O sacrifício anual (ou, como variante, o auto-sacrifício) de um deus parece ter sido um elemento essencial das religiões semíticas. Os cerimonias de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes partes doglobo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar do ser humano vivo. O sacrifício teantrópico do deus, no qual, infelizmente, me é impossível aqui deter-me de modo tão completo quanto no sacrifício animal, lança uma luz retrospectiva sabre o significado das formas mais antigas de sacrifício. [Smith, 1894, 410 e seg.] Ele reconhece, com uma franqueza que dificilmente pode ser excedida, o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma solução simples. O sacrifício animal original já constituía um substituto de um sacrifício humano [—] a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o representante paterno mais uma vez reassumiu sua figura humana, o sacrifício animal também podia ser retransformado num sacrifício humano.

A lembrança do primeiro grande ato de sacrifício mostrava-se assim indestrutível, não obstante todos os esforços para esquecê-lo; e, no próprio ponto em que os homens procuravam colocar-se a maior distância dos motivos que os levaram a ele, sua reprodução indeformada surgiu na forma do sacrifício do deus. Não é necessário estender-se aqui sobre os desenvolvimentos do pensamento religioso que, sob a forma de racionalizações, tornaram possível esta recorrência. Robertson Smith, que nada sabia de nossa interpretação que atribui a origem do sacrifício a esse grande acontecimento da pré-história humana, declara que as cerimônias dos festivais em que os antigos semitas celebravam a morte de uma divindade ‘eram correntemente interpretadas como a comemoração de uma tragédia mítica’ [Ibid., 413.]. ‘O luto’, declara, ‘não é uma expressão espontânea de pesar pela tragédia divina, mas obrigatória e forçada pelo temor da ira sobrenatural. E um dos principais objetivos dos enlutados é rejeitar a responsabilidade pela morte do deus [—] ponto que já foi examinado em conexão com os sacrifícios teantrópicos, tais como a “morte do boi em Atenas”.’ (Ibid., 412.) Parece mais provável que essas ‘interpretações correntes’ fossem corretas e que os sentimentos dos celebrantes fossem integralmente explicados pela situação subjacente.

Vamos presumir ser um fato, então, que no decurso do desenvolvimento posterior das religiões, os dois fatores propulsores, o sentimento de culpa do filho e sua rebeldia, nunca se tenham extinguido. Todas as tentativas feitas para solucionar os problemas religiosos, todos os tipos de reconciliação efetuados entre essas duas forças mentais opostas mais cedo ou mais tarde ruíam sob a influência combinada, sem dúvida, dos fatos históricos, das mudanças culturais e das modificações psíquicas internas.

Os esforços do filho para colocar-se no lugar do deus-pai tornaram-se ainda mais óbvios. A introdução da agricultura aumentou sua família patriarcal. Ele aventurou-se a novas demonstrações de sua libido incestuosa, que encontraram satisfação simbólica no cultivo da Terra-Mãe. Surgiram figuras divinas como Átis, Adônis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades cheias de juventude, a desfrutar dos favores das deusas-mães e a cometer incesto com a mãe, em desafio ao pai. Mas o sentimento de culpa, que não fora aliviado por essas criações, encontrou expressão em mitos que conferiam apenas vidas breves a esses favoritos juvenis das deusas-mães e decretavam sua punição pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal. Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele, pereceu por castração. O luto por esses deuses e o júbilo por sua ressurreição foram transferidos para o ritual de outra divindade-filho que estava destinada a alcançar um sucesso permanente.

Quando o cristianismo pela primeira vez penetrou no mundo antigo, defrontou-se com a competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós. Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos do ônus de cumplicidade no ato. Havia um método alternativo de mitigar a culpa e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos. A doutrina do pecado original era de origem órfica. Constituía parte dos mistérios e deles propagou-se para as escolas de filosofia da antiga Grécia. (Reinach, 1905-12, 2, 75 e segs.) A humanidade, dizia-se, descendia dos Titãs, que haviam matado o jovem Dioniso-Zagreus e o despedaçado. A carga desse crime pesava sobre eles. Um fragmento de Anaximandro conta como a unidade do mundo foi rompida por um pecado primevo e que tudo dele surgido devia sofrer o castigo. A malta tumultuosa, a matança e o despedaçamento pelos Titãs fazem-nos recordar com bastante clareza o sacrifício totêmico descrito por São Nilo [Ibid., 2, 93] — bem como, a propósito, também muitos outros mitos antigos, inclusive, por exemplo, o da morte do próprio Orfeu. Não obstante, existe uma diferença perturbadora no fato de o assassinato ter sido cometido contra um deus jovem.

Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai.

Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para o pai foi ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada. Mas, neste ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna. Como sinal dessa substituição, a antiga refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão, em que a associação de irmãos consumia a carne e o sangue do filho — não mais do pai — obtinha santidade por esse e identificava-se com ele. Assim podemos acompanhar, atráves das idades, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia cristã, podendo identificar em todos esses rituais o efeito do crime pelo qual os homens se encontravam tão profundamente abatidos, mas do qual, não obstante, devem sentir-se tão orgulhosos. A comunhão cristã, no entanto, constitui essencialmente uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato culposo. Podemos perceber a inteira justiça da declaração de Frazer de que ‘a comunhão cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida muito mais antigo que o cristianismo’.


(7)
Um acontecimento como a eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços inerradicáveis na história da humanidade e, quanto menos ele próprio tenha sido relembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que deu origem. Resistirei à tentação de apontar esses traços na mitologia, onde não são difíceis de encontrar, e voltar-me-ei noutra direção, aceitando a sugestão feita por Salomon Reinach num ensaio muito instrutivo sobre a morte de Orfeu.

Na história da arte grega deparamo-nos com uma situação que apresenta notáveis semelhanças com a cena da refeição totêmica, tal como identificada por Robertson Smith, bem como com diferenças não menos profundas dela. Tenho em mente a situação da mais antiga tragédia grega. Um conjunto de indivíduos, com nomes e vestimentas iguais, cercavam uma figura isolada, todos eles dependendo de suas palavras e atos: eram o Coro e o personificador do Herói. Este era originalmente o único ator. Posteriormente, um segundo e terceiro atores foram incluídos, para atuar como contrapartes do Herói, representar aspectos característicos dele; mas o caráter do próprio Herói e sua relação com o Coro permaneceram inalterados. O Herói da tragédia deve sofrer; até hoje isso continua sendo a essência da tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que era conhecido como ‘culpa trágica’; o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de nossa vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside na rebelião contra alguma autoridade divina ou humana e o Coro acompanhava o Herói com sentimentos de comiseração, procurava retê-lo, adverti-lo e moderá-lo, pranteando-o quando encontrara o que se sentia ser a punição merecida por seu ousado empreendimento.

Mas por que tinha de sofrer o Herói da tragédia? E qual era o significado de sua ‘culpa trágica’? Abreviarei a discussão e darei uma resposta rápida. Tinha de sofrer porque era o pai primevo, o Herói da grande tragédia primitiva que estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e a culpa trágica era a que tinha sobre si próprio, a fim de aliviar da sua o Coro. A cena no palco provinha da cena histórica através de um processo de deformação sistemática — um produto de refinada hipocrisia, poder-se-ia mesmo dizer. Na realidade remota, haviam sido verdadeiramente os membros do Coro que tinham causado o sofrimento do Herói; agora, entretanto, desmanchavam-se em comiseração e lamentações e era o próprio Herói o responsável por seus próprios sofrimentos. O crime que fora jogado sobre seus ombros, a presunção e a rebeldia contra uma grande autoridade era precisamente o crime pelo qual os membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis. E assim o Herói trágico tornou-se, ainda que talvez contra a sua vontade, o redentor do Coro.

Na tragédia grega, o tema especial da representação eram os sofrimentos do bode divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores, que se identificavam com ele. Assim, sendo fácil compreender como o drama, que tinha se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da Paixão de Cristo.

Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito supreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: — a relação do homem com o pai. É mesmo possível que ainda outro problema psicológico se encaixe nesta mesma conexão. Muitas vezes tive ocasião de assinalar que a ambivalência emocional, no sentido próprio da expressão — ou seja, a existência simultânea de amor e ódio para os mesmos objetos — jaz na raiz de muitas instituições culturais importantes. Não sabemos nada da origem dessa ambivalência. Uma das pressuposições possíveis é que ela seja um fenômeno fundamental de nossa vida emocional. Mas parece-me bastante válido considerar outra possibilidade, ou seja, que originalmente ela não fazia parte de nossa vida emocional, mas foi adquirida pela raça humana em conexão com o complexo-pai, precisamente onde o exame psicanalítico de indivíduos modernos ainda a encontra revelada em toda a sua força.

Antes de concluir minhas observações, porém, não devo deixar de salientar que, embora meus argumentos tenham conduzido a um alto grau de convergência para um único e abrangente nexo de idéias, esse fato não deve fazer-nos deixar de ver as incertezas de minhas premissas ou as dificuldades envolvidas em minhas conclusões. Mencionarei apenas duas das últimas, que podem também ter chamado a atenção de um certo número de leitores.

Ninguém pode ter deixado de observar, em primeiro lugar, que tomei como base de toda minha posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo. Em particular, supus que o sentimento de culpa por uma determinada ação persistiu por muitos milhares de anos e tem permanecido operativo em gerações que não poderiam ter tido conhecimento dela. Supus que um processo emocional, tal como se poderia ter desenvolvido em gerações de filhos que foram maltratados pelos pais, estendeu-se a gerações novas livres de tal tratamento, pela própria razão de o pai ter sido eliminado. Devo admitir que estas são dificuldades graves e qualquer explicação que pudesse evitar pressuposições dessa espécie seria preferível.

Uma reflexão mais demorada, contudo, demonstrará que não estou só na responsabilidade por esse audacioso procedimento. Sem a pressuposição de uma mente coletiva, que torna possível negligenciar as interrupções dos atos mentais causadas pela extinção do indivíduo, a psicologia social em geral não poderia existir. A menos que os processos psíquicos sejam continuados de uma geração para outra, ou seja, se cada geração fosse obrigada a adquirir novamente sua atitude para com a vida, não existiria progresso neste campo e quase nenhuma evolução. Isso dá origem a duas outras questões: quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na seqüência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte? Não vou fingir acreditar que estes problemas estão suficientemente explicados ou que a comunicação direta e a tradição — as primeiras coisas que nos ocorrem — são suficientes para explicar o processo. A psicologia social em geral mostra muito pouco interesse pela maneira através da qual se estabelece a continuidade exigida pela vida mental de sucessivas gerações. Uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real. Pode ser este o significado das palavras do poeta:


Was du ererbt von deinen Vätern hast,

Erwib es, um es zu besitzen.


O problema pareceria ainda mais difícil se tivéssemos de admitir que os impulsos mentais podem ser tão completamente reprimidos que deles não reste nenhum vestígio. Mas não é este o caso. Mesmo a mais implacável repressão tem de deixar lugar para impulsos substitutos deformados e para as reações que deles resultem. Se assim for, portanto, podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança de emoção.

Uma outra dificuldade poderia, na realidade, surgir dos círculos psicanalíticos. Os preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram por nós explicados como reações a um ato que deu àqueles que o cometeram o conceito de ‘crime’. Sentiram remorso por ele e decidiram que não se deveria repetir e que sua execução não traria vantagens. Este sentimento de culpa criativo ainda persiste entre nós. Encontramo-lo operando de uma maneira não social nos neuróticos e produzindo novos preceitos morais e restrições persistentes, como expiação por crimes que foram cometidos e precaução contra a prática de novos. Se, contudo, pesquisarmos entre esses neuróticos para descobrir quais foram os atos que provocaram tais reações, ficaremos desapontados. Não encontraremos atos, mas apenas impulsos e emoções, pretendendo fins malignos, mas impedidos de realizar-se. O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.

Não poderá o mesmo ser verdade quanto aos homens primitivos? Temos justificativas para acreditar que, como um dos fenômenos de sua organização narcisista, eles supervalorizam seus atos psíquicos a um grau extraordinário. Conseqüentemente, o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia — plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Desta maneira, evitaríamos a necessidade de atribuir a origem de nosso legado cultural, de que com justiça nos orgulhamos, a um crime odioso, revoltante para todos os nossos sentimentos. Nenhum dano seria assim feito à cadeia causal que se estende desde os começos aos dias atuais, pois a realidade psíquica seria suficientemente forte para suportar o peso dessas conseqüências. A isto se poderá objetar que realmente efetuou-se uma alteração na forma da sociedade, de uma horda patriarcal para um clã fraterno. Trata-se de um argumento poderoso, mas não conclusivo. A alteração poderia ter sido efetuada de uma maneira menos violenta e, não obstante, capaz de determinar o aparecimento da reação moral. Enquanto a pressão exercida pelo pai primevo podia ser sentida, os sentimentos hostis para com ele eram justificados e o remorso por sua causa teria de esperar por seu dia. E se se argumentar ainda que tudo que tem sua origem na relação ambivalente com o pai — o tabu e a ordenação sacrificatória — se caracteriza pela mais profunda seriedade e a mais completa realidade, essa nova objeção tem tão pouco peso quanto a outra, porque os cerimoniais e as inibições dos neuróticos obsessivos apresentam essas mesmas características e, não obstante, têm sua origem apenas na realidade psíquica — provêm de intenções e não da execução delas. Temos de evitar transplantar para o mundo dos homens primitivos e dos neuróticos, cuja riqueza reside apenas no interior deles próprios, o desprezo de nosso mundo corriqueiro — com sua riqueza de valores materiais — pelo que é simplesmente pensado ou desejado.

Aqui nos defrontamos com uma decisão que, na verdade, não é fácil. Em primeiro lugar, porém, devo confessar que a distinção, que pode parecer fundamental para outras pessoas, a nosso ver não afeta o âmago da questão. Se desejos e impulsos possuem o pleno valor de fatos para os homens primitivos, compete a nós conceder à sua atitude uma atenção compreensiva, em vez de corrigi-la de acordo com nossos próprios padrões. Examinemos, então, mais de perto o caso da neurose — a comparação com a qual nos conduziu à nossa presente incerteza. Não é exato dizer que os neuróticos obsessivos, curvados sob o peso de uma moralidade excessiva, estão-se defendendo apenas da realidade psíquica e se punindo através de impulsos que foram simplesmente sentidos. A realidade histórica também tem a sua parte na questão. Na infância, eles tiveram esses impulsos malignos de modo puro e simples e transformaram-nos em atos até onde a impotência da infância permitia. Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um período de maldade na infância — uma fase de perversão que foi precursora e pré-condição do período posterior de moralidade excessiva. A analogia entre os homens primitivos e os neuróticos será estabelecida assim de modo muito mais completo, se supusermos que também no primeiro caso a realidade psíquica — a respeito da qual não temos dúvida quanto à forma que tomou — coincidiu no princípio com a realidade concreta, ou seja, que os homens primitivos realmente fizeram aquilo que todas as provas mostram que pretendiam fazer.

Tampouco devemos deixar-nos influenciar demais em nosso julgamento dos homens primitivos pela analogia com os neuróticos. Há distinções, também, que devem ser levadas em conta. Sem dúvida alguma, é verdade que o contraste nítido que nós traçamos entre o pensar e o fazer acha-se ausente em ambos. Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato. Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se diretamente em ação. Neles, é antes o ato que constitui um substituto do pensamento, sendo por isso que, sem pretender qualquer finalidade de julgamento, penso que no caso que se nos apresenta pode-se presumir com segurança que ‘no princípio foi Ato’.


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