Totem e tabu



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O MOISÉS DE MICHELANGELO

Posso dizer de saída que não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obras de arte tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto a fim de me assegurar da indulgência do leitor para a tentativa que aqui me propus.

Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta.

Isto me levou a reconhecer o ato — um paradoxo evidente — de que precisamente algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão. Sentimo-nos cheios de admiração reverente por elas e as admiramos, mas somos incapazes de dizer o que representam para nós. Não tenho leitura suficiente do assunto para saber se esse fato já foi constatado; possivelmente, na verdade, alguém que escreva sobre estética já descobriu ser esse estado de perplexidade intelectual condição necessária para que uma obra de arte atinja seus maiores efeitos. Tenho a maior relutância em acreditar na necessidade dessa condição.

Não quero dizer que os conhecedores e aficionados da arte não encontrem palavras para exaltar esses objetos. Eles são bastante eloqüentes, segundo me parece. Mas, geralmente, diante de uma grande obra de arte, cada um diz algo diferente do outro e nenhum diz nada que resolva o problema para o admirador despretensioso. A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar. Mas por que a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental? Talvez, no que concerne às grandes obras de arte, isso nunca seja possível sem a aplicação da psicanálise. O próprio produto, no final de contas, tem de admitir uma tal análise, se é que realmente constitui uma expressão efetiva das intenções e das atividades emocionais do artista. Para descobrir sua intenção, contudo, tenho primeiro de descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado em sua obra; devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la. É possível, portanto, que uma obra de arte desse tipo necessite de interpretação e que somente depois de tê-la interpretado poderei vir a saber por que fui tão fortemente afetado. Arrisco-me mesmo a esperar que o efeito da obra não sofrerá qualquer diminuição após termos conseguido analisá-la.

Consideremos a obra-prima de Shakespeare, Hamlet, peça hoje com mais de três séculos. Tenho acompanhado de perto a literatura psicanalítica e aceito sua pretensão de que somente depois de ter tido o material da tragédia sua origem remontada pela psicanálise ao tema edipiano é que o mistério de seu efeito foi por fim explicado. [Cf. A Interpretação de Sonhos, Ed. Standard Bras., vol. IV, 280-2.] Mas antes que isso fosse feito, que volume de esforços interpretativos diferentes e contraditórios, que variedade de opiniões sobre o caráter do herói e as intenções do dramaturgo! Pede Shakespeare a nossa simpatia para um homem doente, um alfenim fracassado ou um idealista que simplesmente é bom demais para o mundo real? E como muitas dessas interpretações nos deixam frios! — tão frios que em nada contribuem para explicar o efeito da peça, nos levando a pensar antes que o seu apelo mágico está apenas nos pensamentos impressionantes que expressa e no esplendor de sua linguagem. E no entanto esses próprios esforços não revelam a necessidade que sentimos de descobrir nela alguma fonte de poder além desses?

Outras dessas inescrutáveis e maravilhosas obras de arte é a estátua de mármore de Moisés, da autoria de Michelangelo, situada na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Como sabemos, ela constitui apenas um fragmento da tumba gigantesca que o artista deveria ter erigido para o poderoso Papa Júlio II. Sempre me deleita ler uma frase apreciativa sobre essa estátua, tal como ser ela ‘a coroa da escultura moderna’ (Grim [1900, 189]), porque nunca uma peça de estatuária me causou impressão mais forte do que ela. Quantas vezes subi os íngremes degraus que levam do desgracioso Corso Cavour à solitária piazza em que se ergue a igreja abandonada e tentei suportar o irado desprezo do olhar do herói! Às vezes saí tímida e cuidadosamente da semi-obscuridade do interior como se eu próprio pertencesse à turba sobre a qual seus olhos estão voltados — a turba que não pode prender-se a nenhuma convicção, que não tem nem fé nem paciência e que se rejubila ao reconquistar seus ilusórios ídolos.

Mas por que chamo de inescrutável essa estátua? Não há mais leve dúvida de que representa Moisés, o Legislador dos Judeus, segurando as Tábuas dos Dez Mandamentos. Até aí, tudo certo, mas é tudo. Ainda em 1912 um crítico de arte, Max Sauerlandt, disse: ‘Nenhuma obra de arte no mundo foi julgada de modo tão diverso quanto o Moisés com a cabeça de Pan. A simples interpretação da figura deu origem a pontos de vista completamente opostos (…)’ Baseando-me num ensaio publicado há apenas cinco anos, estabelecerei primeiro as dúvidas que se acham associadas a essa figura de Moisés; e não será difícil demonstrar que por detrás delas jaz oculto tudo o que é mais essencial e valioso para a compreensão dessa obra de arte.

I
O Moisés de Michelangelo é representado sentado; o corpo volta-se para frente, a cabeça com a pujante barba olha para a esquerda, o pé direito repousa sobre o solo e a perna esquerda acha-se levantada de maneira que apenas os artelhos tocam o chão. O braço direito une as Tábuas da Lei a uma parte da barba e o esquerdo repousa sobre o colo. Se fosse dar uma descrição mais pormenorizada de sua atitude, teria de antecipar o que desejo dizer mais tarde. As descrições da figura fornecidas por diversos escritores são, a propósito, curiosamente inadequadas. Aquilo que não se compreendeu foi imprecisamente percebido ou reproduzido. Grimm [1990, 189] diz que a mão direita, ‘sob cujo braço as Tábuas repousam, agarra a barba’. Assim também Lübke [1863, 666]: ‘Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba a derramar-se (…)’; e Springer [1895, 33]: ‘Moisés aperta uma das mãos (a esquerda) contra o corpo e enfia a outra, como inconsciente, nos pujantes anéis de sua barba.’ Justi [1900, 326] pensa que os dedos da mão (direita) estão brincando com a barba, ‘como um homem agitado atualmente brincaria com a corrente do relógio’. Müntz [1895, 391n] também acentua esse brincar com a barba. Thode [1908, 205] fala da ‘calma e firme postura da mão direita sobre as Tábuas que repousam contra o flanco’. Não identifica nenhum sinal de excitação mesmo na mão direita, como fazem Justi e também Boito [1883]. ‘A mão permanece agarrando a barba, na posição em que se achava antes que o Titã voltasse a cabeça para um dos lados.’ Jakob Burckhardt [1927, 634] queixa-se de que ‘o celebrado braço esquerdo não tem na realidade outra função que apertar a barba contra o corpo’.

Se não há concordância em simples descrições, não é de surpreender uma divergência de opiniões quanto ao significado de diversas características da estátua. A meu ver, não podemos caracterizar melhor a expressão facial de Moisés que nas palavras de Thode [1908, 205], que lê nelas ‘uma mescla de ira, dor e desprezo’ — ‘ira em suas sobrancelhas ameaçadoramente contraídas, dor no olhar e desprezo no lábio inferior saliente e nos cantos da boca, voltados para baixo’. Mas outros admiradores devem tê-lo visto com outros olhos. Assim, Dupaty diz: ‘Sua majestosa fronte parece ser apenas um véu transparente, a semi-ocultar a grande mente’. Lübke [1863, 666-7], por outro lado, afirma que ‘procurar-se-ia em vão nessa cabeça uma expressão de inteligência superior; suas sobrancelhas voltadas para baixo de nada falam, a não ser de uma capacidade de ira infinita e de uma energia completamente submissa’. Guillaume (1876 [96]) difere ainda mais amplamente em sua interpretação da expressão do rosto. Nele não encontra emoção, mas ‘apenas uma orgulhosa simplicidade, uma dignidade inspirada, uma fé viva. Os olhos de Moisés encaram o futuro, ele prevê a sobrevivência duradoura de seu povo, a imutabilidade de sua lei’. De modo semelhante, para Müntz [1895, 391] ‘os olhos de Moisés fitam muito além da raça dos homens. Estão voltados para aqueles mistérios que somente ele divisou’. Para Steinmann [1899, 169], na realidade, este Moisés ‘não é mais o severo legislador, o terrível inimigo do pecado, armado da ira de Jeová, mas o sacerdote real, de quem o tempo não pode aproximar-se, beneficente e profético, com o reflexo da eternidade no semblante, recebendo o último adeus do seu povo’.

Houve mesmo alguns a quem o Moisés de Michelangelo nada teve a dizer e que foram suficientemente honestos para admiti-lo. Assim, disse um crítico da Quarterly Review de 1858 [103, 469]: ‘Há uma ausência de significado na concepção geral, que exclui a idéia de um todo auto-suficiente (…)’ E ficamos estupefactos ao saber que existem ainda outros que nada encontram a admirar no Moisés, mas se revoltam contra ele e queixam-se da brutalidade da figura e do molde animalesco da cabeça.

Teria então a mão do mestre realmente traçado na pedra uma mensagem tão vaga que torna possível tantas leituras diferentes dela?

Surge outra questão, contudo, que abrange a primeira. Pretendeu Michelangelo criar um ‘estudo eterno de caráter e estado de ânimo neste Moisés ou retratou-o num determinado momento de sua vida e, se assim foi, num momento altamente significativo? A maioria dos juízes decidiu pelo último sentido e pôde dizer-nos qual foi o episódio da vida de Moisés que o artista imortalizou na pedra. Foi a descida do Monte Sinai, onde Moisés recebera de Deus as Tábuas, o momento em que percebe que o povo havia naquele meio-tempo feito para si um Bezerro de Ouro e estava dançando em torno dele e rejubilando-se. Esse é o espetáculo que evoca os sentimentos representados em seu semblante — sentimentos que no instante seguinte colocarão sua grande compleição em ação violenta. Michelangelo escolheu esse último momento de hesitação, de calma antes da tempestade, para sua representação dele. No instante seguinte, Moisés se erguerá — seu pé esquerdo já se alçou do solo —, arremessará as Tábuas por terra e desencadeará sua cólera sobre o povo infiel.

Mais uma vez, muitas diferenças de opinião existem entre os que apóiam essa interpretação.

Burckhardt [1927, 634] escreve: ‘Moisés parece ser mostrado naquele momento em que avista a adoração do Bezerro de Ouro e está pondo-se repentinamente de pé. Sua forma se acha animada pelo começo de um poderoso movimento e a força física de que é dotado faz-nos esperá-lo com medo e tremor.’

Lübke [1863, 666] diz: ‘É como se nesse momento seus olhos faiscantes estivessem percebendo o pecado da adoração do Bezerro de Ouro e um poderoso movimento interno percorresse toda a sua estrutura. Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba, como para dominar suas ações um instante ainda, apenas para que a explosão de sua ira se faça com força mais devastadora no momento seguinte.’

Springer [1885, 33] concorda com essa opinião, mas não sem mencionar uma suspeita, que posteriormente será objeto de nossa atenção neste artigo. Diz ele: ‘Inflamado de energia e zelo, é com dificuldade que o herói domina a emoção interior (…) Uma situação dramática nos vem assim involuntariamente à lembrança e somos levados a acreditar que Moisés é representado no momento em que vê o povo de Israel adorando o Bezerro de Ouro e sua ira está prestes a irromper. Não é fácil, na verdade, conciliar essa impressão com a intenção real do artista, desde que a figura de Moisés, como as outras cinco figuras sentadas da parte superior do túmulo do papa, fora concebida primariamente para ter um efeito decorativo. Mas ela testemunha muito convincentemente a vitalidade e a individualidade retratadas na figura de Moisés.

Um ou dois autores, sem na realidade aceitar a teoria do Bezerro de Ouro, concordam entretanto quanto ao ponto principal, ou seja, que Moisés está prestes a levantar-se e agir.

De acordo com Grimm [1900, 189], ‘a forma’ (de Moisés) ‘está cheia de uma majestade, uma autoconfiança, um sentimento de que todos os raios do céu estão sob seu comando, e todavia está se contendo antes de desencadeá-los, esperando ver se os inimigos a quem pretende aniquilar se atreverão a atacá-lo. Está sentado como se estivesse a ponto de levantar-se, a orgulhosa cabeça erguida; a mão, sob cujo braço as Tábuas repousam, agarra a barba, que lhe cai em pesadas ondas sobre o peito, as narinas distendidas e os lábios modelados como se neles tremessem palavras’.

Heath Wilson [1876, 450] acha que a atenção de Moisés foi despertada e que ele está a ponto de levantar-se de um salto, mas hesita ainda; e que seu olhar, mescla de desprezo e indignação, ainda é capaz de transformar-se num olhar de compaixão.

Wölfflin [1899, 72] fala de um ‘movimento inibido’. A causa dessa inibição, diz ele, reside na vontade do próprio homem; é seu último momento de autocontrole, antes de perdê-lo e levantar-se de um salto.

Justi [1900, 326-7] foi mais longe que todos os outros na interpretação da estátua de Moisés no ato de perceber o Bezerro de Ouro, apontando detalhes até então inobservados nela e incorporando-os à sua hipótese. Chama nossa atenção para a posição das duas Tábuas — posição fora do comum, porque estão a ponto de escorregar sobre o assento de pedra. ‘Ele’ (Moisés) ‘poderia estar assim olhando na direção donde provinha o alarido com uma expressão de mau presságio ou poderia ser a visão concreta da abominação que lhe aplicara um golpe estonteante. Trêmulo de horror e pesar, ele deixou-se cair. Passara na montanha quarenta dias e quarenta noites e estava cansado. Um horror, uma grande virada da sorte, um crime, até mesmo a felicidade podem ser percebidos num só momento, mas não apreendidos em sua essência, sua profundidade ou suas conseqüências. Por um instante, parece a Moisés que sua obra está destruída e perde toda a esperança no seu povo. Nesses momentos, as emoções interiores traem-se involuntariamente em pequenos movimentos. Deixa as Tábuas escorregarem da mão direita sobre o assento de pedra; elas caem sobre a quina e são pressionadas pelo antebraço contra o lado do corpo. A mão, entretanto, entra em contato com o peito e a barba, e assim, pelo voltar da cabeça para a direita do espectador, traz a barba para a esquerda, rompendo a simetria desse adorno masculino. Parece como se os dedos estivessem brincando com a barba, tal como um homem agitado atualmente brincaria com a corrente do relógio. A mão esquerda acha-se mergulhada nas vestes sobre a parte inferior do corpo — no Antigo Testamento, as vísceras são a sede das emoções — mas a perna esquerda já está retraída e a direita, posta à frente; no instante seguinte, se levantará de um salto, sua energia será transposta do pensamento para a ação, o braço direito se moverá, as Tábuas cairão ao solo e a transgressão vergonhosa será expiada em torrentes de sangue (…)’ ‘Este não é ainda o momento da tensão de um ato. O sofrimento da mente ainda o domina e quase o paralisa.’

Knapp [1906, XXXII] adota o mesmo ponto de vista, mas sem introduzir o ponto duvidoso no início da descrição nem levar mais adiante a idéia das Tábuas a escorregar. ‘Ele que até aquele momento se achava a sós com seu Deus é distraído por sons terrenos. Escuta um rumor; o ruído de cantos e danças desperta-o de seu sonho e volta os olhos e a cabeça na direção do alarido. Num só instante, medo, cólera e paixão desenfreada percorrem sua enorme estrutura. As Tábuas começar a escorregar e cairão ao solo e se quebrarão quando ele levantar-se de um salto e lançar o trovão irado de sua voz no meio de seu povo apóstata (…)’ Knapp, assim, enfatiza o elemento de preparação para ação, discordando da opinião de que o que se representa seja uma inibição inicial devida a uma agitação dominante.

Não se pode negar que há algo de extraordinariamente atraente em tentativas de interpretação do tipo efetuado por Justi e Knapp. Isto porque elas não se detêm no efeito geral da figura, mas se baseiam em características isoladas, as quais geralmente deixamos de notar, esmagados pela impressão total da estátua e, por assim dizer, paralisados por ela. A cabeça e os olhos visivelmente voltados para a esquerda, enquanto o corpo está voltado para a frente, apóiam a idéia de que Moisés em repouso subitamente viu naquele lado algo que prendeu sua atenção. Seu pé levantado dificilmente pode significar outra coisa que não seja estar se preparando para levantar-se de repente; e a maneira muito pouco comum de segurar as Tábuas (trata-se de objetos muito sagrados e não devem ter sido colocadas na composição como um acessório comum) fica inteiramente explicada se supusermos que elas escorregaram em conseqüência da agitação de seu portador e cairão ao solo. De acordo com essa opinião, devemos acreditar que a estátua representa um momento especial e importante na vida de Moisés e não teremos dúvida de que o momento seja este.

Mas duas observações de Thode nos privam do conhecimento que pensávamos ter adquirido. Esse crítico diz que para ele as Tábuas não estão escorregando, mas se acham ‘firmemente guardadas’. Chama a atenção para a ‘calma e firme postura da mão direita sobre as Tábuas em repouso’. Se nós próprios olharmos, não poderemos deixar de admitir sem reservas que Thode tem razão. As Tábuas acham-se firmemente alojadas e sem perigo de deslizar. A mão direita de Moisés as sustenta ou é sustentada por elas. Isso não explica a posição em que são mantidas, é verdade, mas essa posição não pode ser utilizada em favor da interpretação de Justi e de outros [Thode (1908), 205.]

A segunda observação é ainda mais definitiva. Thode nos lembra que ‘essa estátua foi planejada como uma entre seis e a intenção era fazê-la sentada. Ambos os fatos contradizem o ponto de vista de que Michelangelo pretende registrar um momento histórico particular, porque, com referência à primeira consideração, o plano de representar uma fileira de figuras sentadas como tipos de seres humanos — como a vita activa e a vita contemplativa — excluía a representação de um episódio histórico determinado e, em relação à segunda, a representação de uma postura sentada — postura necessária à concepção artística de todo o monumento — contradiz a natureza desse episódio, a saber, a descida de Moisés do Monte Sinai para o acampamento’.

Se aceitarmos a objeção de Thode, descobriremos que podemos acrescentar outros argumentos à sua ponderação. A figura de Moisés deveria ter decorado a base do túmulo juntamente com outras cinco estátuas (ou, segundo um esboço posterior, três). Sua contrapartida imediata deveria ser uma figura de Paulo. Um outro par, representando a vita activa e a vita contemplativa sob a forma de Lia e Raquel — de pé, é verdade — foi executado na tumba, tal como ainda existe em sua forma infelizmente inacabada. O Moisés, assim, faz parte de um todo e não podemos imaginar que a figura se destinasse a despertar no espectador a expectativa de que estivesse prestes a pular de seu assento e atirar-se para criar um tumulto por sua própria conta. Se as outras figuras não fossem também representadas como estando prestes a empreender uma ação violenta — e parece muito pouco provável que o tivessem sido — então criaria uma impressão muito má uma delas dar-nos a ilusão de que iria deixar seu lugar e os companheiros ou, na verdade, abandonar seu papel no esquema geral. Tal intenção produziria um efeito caótico e não podemos atribuí-la a um grande artista, a menos que os fatos nos obriguem a fazê-lo. A figura no ato de urgente partida estaria em completo desacordo com o estado de espírito a que o túmulo pretende nos induzir.

A figura de Moisés não deve, por conseguinte, ser imaginada como estando prestes a levantar-se; deve-se-lhe permitir que permaneça como está, em sublime repouso, como as outras figuras e como a estátua proposta do Papa (a qual, entretanto, não foi executada pelo próprio Michelangelo). Mas então a estátua que vemos diante de nós não pode ser a de um homem cheio de ira, de Moisés quando desceu do Monte Sinai e encontrando seu povo sem fé, jogou por terra as Tábuas da Lei, quebrando-as. E, na verdade, posso relembrar minha própria desilusão quando, durante minhas primeiras visitas a San Pietro in Vincoli, costumava sentar-me em frente à estátua, na esperança de que então a visse levantar-se sobre o pé alçado, atirar ao chão as Tábuas da Lei e dar vazão a sua ira. Nada disso aconteceu. A imagem de pedra tornava-se cada vez mais imobilizada, uma calma quase opressivamente solene dela emanava e eu era obrigado a compreender que ali estava representado algo que permaneceria imutável; que aquele Moisés ficaria sentado assim, em sua cólera, para sempre.

Mas se desistimos da interpretação da estátua que a vê como Moisés exatamente antes da explosão de cólera provocada pela visão do Bezerro de Ouro, não teremos alternativa senão aceitar uma das hipóteses que a consideram como sendo um estudo de caráter. A opinião de Thode parece ser a menos arbitrária e a que tem mais estreita ligação com o significado dos movimentos. Diz ele: ‘Aqui, como sempre, [Michelangelo] está interessado em representar um certo tipo de caráter. Cria a imagem de um líder apaixonado da humanidade que, consciente de sua divina missão de legislador, defronta-se com a oposição incompreensiva dos homens. O único meio de representar um homem de ação desse tipo era acentuar a força de sua vontade, o que foi feito através de uma representação artística de movimento que impregna toda a sua aparente tranqüilidade, como percebemos no gesto da cabeça, na tensão dos músculos e na posição do pé esquerdo. São os mesmos sinais característicos que encontramos novamente no vir activus da Capela Médici em Florença. Esse caráter geral da figura é ainda acentuado pela enfatização do conflito que não pode deixar de surgir entre esse gênio reformador e o resto da humanidade. Emoções de ira, desprezo e sofrimento estão nele representadas. Sem elas, não teria sido possível retratar a natureza de um super-homem deste tipo. Michelangelo criou, não uma figura histórica, mas um tipo de caráter corporificando uma inesgotável força interior capaz de domar o mundo recalcitrante; e deu forma não apenas à narrativa bíblica de Moisés, mas às suas próprias experiências internas, às suas impressões tanto da individualidade do próprio Júlio como também, acredito, às fontes subjacentes dos perpétuos conflitos da Savonarola.’ [1908, 206.]

Pode-se estabelecer uma conexão entre esse ponto de vista e a observação de Knackfuss [1900, 69] de que o grande segredo do impacto produzido pelo Moisés está no contraste artístico entre a flama interior e a calma exterior de sua postura.

Quanto a mim, nada tenho a objetar à explicação de Thode; mas sinto falta de alguma coisa nela. Talvez seja a necessidade de descobrir um paralelo mais estreito entre o estado de espírito do herói, tal como se expressa em sua atitude, e o contraste acima mencionado entre a calma ‘exterior’ e a emoção ‘interior’.

II
Muito antes de ter tido qualquer oportunidade de ouvir falar em psicanálise, soube que um conhecedor de arte russo, Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da Europa colocando em dúvida a autoria de muitos quadros, mostrando como distinguir com certeza as cópias dos originais e criando artistas hipotéticos para obras cuja suposição anterior de autoria fora desacreditada. Conseguiu isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão geral e das características principais de um quadro, dando-se ênfase à significação de detalhes de menor importância, como o desenho das unhas, do lóbulo de uma orelha, de auréolas e de outras trivialidades não consideradas que o copista desdenha imitar e que, no entanto, cada artista executa à sua maneira própria e característica. Fiquei então extremamente interessado ao descobrir que o pseudônimo russo ocultava a identidade de um médico italiano chamado Morelli, que morrera em 1891 como Senador do Reino da Itália. Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações.


Ora, em dois lugares da figura de Moisés há pormenores que até aqui não apenas escaparam à observação mas, na realidade, nem mesmo foram corretamente descritos. São a postura da mão direita e a posição das duas Tábuas da Lei. Podemos dizer que essa mão forma uma ligação muito singular e pouco natural, a pedir uma explicação, entre as Tábuas e a barba do herói cheio de cólera. Ele foi descrito como passando os dedos através da barba e brincando com seus anéis, enquanto a borda exterior da mão repousa sobre as Tábuas. Mas evidentemente não se trata disso. Vale a pena examinar mais de perto o que esses dedos da mão direita estão fazendo e descrever mais minuciosamente a pujante barba com a qual se acham em contato.

Percebemos agora muito claramente o seguinte: o polegar da mão está escondido e somente o dedo indicador se acha em contato efetivo com a barba. Está tão profundamente premido contra a massa de cabelos que esta se sobressai acima e abaixo dele, isto é, tanto no sentido da cabeça como do abdome. Os outros três dedos estão apoiados contra a caixa torácica e curvados nas juntas superiores, mal sendo tocados pela madeixa direita extrema da barba, que cai por trás deles. Por assim dizer, eles se afastaram da barba, de maneira que não é correto afirmar que a mão direita está brincando com ela ou nela mergulhada; a simples verdade é que o dedo indicador está pousado sobre uma parte da barba, provocando nesta uma profunda cava. Não se pode negar que apertar a própria barba com um só dedo é um gesto fora do comum, um gesto que não é fácil de entender.

A barba muito admirada de Moisés lhe cai das maçãs do rosto, queixo e lábio superior num certo número de madeixas onduladas que se mantêm distintas uma da outra até embaixo. Uma das madeixas à extrema direita, nascida no rosto, sofre a pressão do dedo indicador que a pressiona para dentro, retendo-a. Podemos presumir que ela retoma o seu curso entre esse dedo e o polegar oculto. A madeixa correspondente, do lado esquerdo, cai praticamente sem obstáculo até muito abaixo, sobre o peito. O que recebeu o tratamento mais estranho foi a espessa massa de cabelos no interior dessa última madeixa, a parte entre ela e a linha intermediária. Não se lhe deixou seguir o movimento da cabeça para a esquerda; foi forçada a enrolar-se frouxamente e formar parte de uma espécie de voluta colocada de través e por cima das madeixas do lado interior direito da barba. Isto se deu por ser ela mantida presa pela pressão do dedo indicador direito, embora nasça do lado esquerdo do rosto e seja, na realidade, a parte principal de todo o lado esquerdo da barba. Assim, a massa principal da barba é jogada para a direita da figura, enquanto a cabeça se acha acentuadamente voltada para a esquerda. No local em que o dedo indicador direito exerce a pressão, formou-se uma espécie de torvelinho de cabelos; madeixas de cabelos vindas da esquerda repousam sobre anéis vindos da direita, ambos apanhados por esse despótico dedo. Somente mais além desse local é que as massas de cabelos, desviadas de seu curso, fluem de novo livremente a passam a cair verticalmente até as extremidades se reunirem na mão esquerda de Moisés, aberta sobre o colo.

Não tenho ilusões quanto à clareza de minha descrição e não me aventuro a opinar se o escultor realmente nos convida a resolver o enigma desse nó na barba de sua estátua. Independentemente disso, porém, permanece o fato de que a pressão do indicador direito afeta principalmente as madeixas vindas do lado esquerdo; e que essa apreensão oblíqua impede a barba de acompanhar o movimento da cabeça e dos olhos para a esquerda. Ora, podemos nos perguntar o que significa essa disposição e a que motivos ela deve sua existência. Se foram realmente considerações de desenho linear e espacial que levaram o escultor a traçar a opulenta cascata de cabelos para a direita da figura que olha para a esquerda, que meio tão estranhamente inapropriado parece ser a pressão de um único dedo! E qual o homem que, por uma ou outra razão, puxando a barba para o outro lado poria na cabeça segurar uma das metades sobre a outra pela pressão de um só dedo? Todavia, terão essas minúcias alguma significação na realidade ou estaremos quebrando a cabeça com coisas que não foram de importância para o seu criador?

Mas prossigamos na suposição de que mesmo esses pormenores possuem significação. Há uma solução que removerá nossas dificuldades e permitirá o vislumbre de um novo significado. Se o lado esquerdo da barba de Moisés jaz sob a pressão de seu dedo direito, poderemos talvez tomar esse gesto como a última etapa de alguma conexão entre a mão direita e o lado esquerdo da barba, conexão que foi muito mais íntima, em algum momento antes do escolhido para a representação. Talvez sua mão houvesse segurado a barba com muito mais energia, atravessasse até o lado esquerdo desta e, ao retornar à posição em que a estátua a mostra, fosse seguida por uma parte da barba, que agora dá testemunho do movimento que acabou de realizar-se. A curva da barba seria então uma indicação do trajeto seguido por essa mão.

Desse modo teremos deduzido que houve um movimento de retorno da mão direita. Esta suposição necessariamente levanta outras. Em imaginação, completemos a cena de que este movimento, estabelecido pela prova da barba, é uma parte; e somos levados, muito naturalmente, à hipótese segundo a qual o Moisés em repouso foi subitamente despertado pelo clamor do povo e pelo espetáculo do Bezerro de Ouro. Estava lá sentado calmamente, vamos supor, a cabeça com a barba a fluir voltada para a frente e a mão, com toda probabilidade, nem estaria perto ela. De repente, o alarido chega aos seus ouvidos; volta a cabeça e os olhos na direção de onde provém o tumulto, vê a cena e a compreende. Então a cólera e a indignação tomam conta dele e tem vontade de se erguer e punir os transgressores, aniquilá-los. Sua ira, distante ainda de seu objetivo, é nesse meio tempo dirigida num gesto contra o próprio corpo. Sua mão impaciente, pronta para agir, aferra-se à barba que se moveu com o gesto da cabeça e a aperta entre o polegar e a palma no punho de ferro dos dedos a se fecharem. É um gesto cuja força e veemência fazem-nos lembrar outras criações de Michelangelo. Mas então uma alteração se efetua, se bem que ainda não saibamos como nem por quê. A mão que tinha sido levada à frente e mergulhara na barba é apressadamente retirada e aberta, e os dedos deixam sua presa; entretanto, tão profundamente eles tinham estado mergulhados que, na retirada, carregam consigo grande parte do lado esquerdo da barba para a direita, permanecendo esses cabelos colocados sobre os da direita, sob o peso de um só dedo, o principal e mais longo da mão. E essa nova posição, que só pode ser compreendida e relacionada com a anterior, é então mantida.

É tempo agora de parar e refletir. Presumimos que a mão direita se achava, de início, afastada da barba; que depois ela se estendeu para a esquerda da figura num momento de grande tensão emocional, agarrou a barba, e que finalmente foi retirada de novo, levando consigo uma parte da barba. Dispusemos desta mão direita como se tivéssemos o livre uso dela. Mas podemos fazer isso? É a mão na verdade tão livre? Não tem de agarrar ou sustentar as Tábuas? Não são evoluções miméticas como essas proibidas por sua importante função? E, além disso, o que poderia ter ocasionado sua retirada, se o motivo que a fez abandonar a posição original era tão forte?

Estamos, na verdade, diante de novas dificuldades. É inegável que a mão direita é responsável pelas Tábuas; e também que não temos nenhum motivo para explicar a retirada que lhe atribuímos. Mas se ambas as dificuldades pudessem ser solucionadas juntas e se então, e só então, apresentassem uma seqüência de acontecimentos clara e inter-relacionada? E se for precisamente algo que está acontecendo às Tábuas o que explica os movimentos da mão?

Se olharmos para o desenho da Fig. 4, veremos que as Tábuas apresentam uma ou duas notáveis características que até agora não foram consideradas dignas de menção. Foi dito que a mão direita repousa sobre as Tábuas ou, então, que as sustenta. E podemos perceber em seguida que as duas pequenas placas justapostas e retangulares se apóiam sobre uma quina. Se olharmos mais atentamente, notaremos que a borda inferior é de formato diferente da superior, que se acha inclinada obliquamente para frente. A borda superior é reta, enquanto que a inferior possui uma protuberância semelhante a um chifre na parte mais próxima de nós e que as Tábuas tocam o assento de pedra exatamente com essa protuberância. Qual pode ser o significado desse pormenor? É bastante evidente que a saliência se destine a assinalar o verdadeiro lado de cima das Tábuas, com referência à escrita. Somente a borda superior das placas retangulares deste tipo é curva ou entalhada. Assim, vemos que as Tábuas estão de cabeça para baixo, o que é uma maneira singular de tratar esses objetos sacros. Estão apoiadas sobre a parte superior e praticamente equilibradas sobre uma quina. Que consideração formal teria levado Michelangelo a colocá-las em tal posição? Ou esse pormenor também não foi importante para o artista?


Começamos a suspeitar que também as Tábuas chegaram à sua atual posição em conseqüência de um movimento anterior; que esse movimento resultou da mudança de posição da mão direita, por nós postulada, e que, por sua vez, obrigou essa mão a fazer sua retirada subseqüente. Os movimentos da mão e das Tábuas podem ser coordenados da seguinte maneira: a princípio a figura de Moisés, que ainda estava sentada tranqüilamente, carregava as Tábuas perpendicularmente sob o braço direito. Sua mão direita agarrava a borda inferior delas e encontrava um apoio na saliência existente em sua parte dianteira. (O fato de isso torná-las mais fáceis de carregar explica suficientemente a posição invertida como as Tábuas eram seguradas.) Chegou então o momento em que a calma de Moisés foi rompida pelo tumulto. Voltou a cabeça na direção deste e, ao ver o espetáculo, levantou o pé num movimento preparatório para levantar-se, a mão abandonou as Tábuas precipitando-se para a esquerda e para cima, barba a dentro, como para voltar sua violência contra o próprio corpo. As Tábuas ficaram então entregues à pressão do braço, que teve de apertá-las contra o lado do corpo. Mas esse apoio não foi suficiente e elas começaram a deslizar para a frente e para baixo. A borda superior, que fora segurada horizontalmente, começou então a voltar-se para a frente e para baixo; e a borda inferior, privada de seu apoio, aproximou-se do assento de pedra com sua quina frontal. Mais um instante e as Tábuas teriam girado sobre esse novo ponto de apoio, atingido o solo com a borda de cima em primeiro lugar e se despedaçado. Foi para impedir isto que a mão direita retornou, deixou escapar a barba, uma parte da qual foi com ela trazida de volta sem intenção, encontrou a borda superior das Tábuas a tempo e segurou-as perto da quina traseira, que agora se havia tornado a mais elevada.



Dessa maneira, o ar singularmente forçado do conjunto — barba, mão e Tábuas inclinadas — pode ser atribuído àquele apaixonado movimento da mão e suas naturais conseqüências. Se quisermos inverter os efeitos desses movimentos tempestuosos, teremos de levantar a quina superior frontal das Tábuas e empurrá-la de volta, levantando assim sua quina frontal inferior (a da protuberância) do assento de pedra; e, depois, abaixar a mão direita e trazê-la para baixo da, agora horizontal, borda inferior das Tábuas.

Encomendei a um artista três desenhos para ilustrar o que quero dizer. A Fig. 3 reproduz a estátua como realmente é; as Figs. 1 e 2 representam as fases anteriores, de acordo com minha hipótese: a primeira, de calma, a segunda, da mais alta tensão, na qual a figura se prepara para levantar-se repentinamente e despreocupou-se das Tábuas que segurava, de modo que estas estão começando a escorregar para baixo. Ora, é notável como as duas posturas nos desenhos imaginários justificam as descrições incorretas dos primeiros escritores. Condivi, contemporâneo de Michelangelo, diz: ‘Moisés, o capitão e líder dos hebreus, está sentado na atitude de um sábio contemplativo, segundo as Tábuas da Lei sob o braço direito e apoiando o queixo na mão esquerda (!), como alguém cansado e cheio de preocupações’. Tal atitude não pode ser discernida na estátua de Michelangelo, mas descreve quase exatamente a visão em que o primeiro desenho se baseia. Lübke escreve, juntamente com outros críticos: ‘Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba a derramar-se’. Isso é incorreto se olharmos para a reprodução da estátua real, mas é verdadeiro quanto ao segundo esboço. (Fig. 2). Justi e Knapp observaram, como já vimos, que as Tábuas estão a ponto de escorregar e acham-se em perigo de se quebrarem. Thode corrigiu-os e demonstrou que as Tábuas encontram-se seguramente retidas pela mão direita; contudo, estariam com a razão se estivessem descrevendo, não a própria estátua, mas o estágio intermediário da reconstrução. É como se tivessem se emancipado da imagem visual da estátua e começado inconscientemente uma análise das forças motivadoras existentes por trás dela, tendo sido conduzidos por essa análise às mesmas conclusões que nós expressamos de modo mais consciente e explícito.

III
Podemos agora, creio eu, começar a colher os frutos de nossos esforços. Vimos como muitos daqueles que sentiram a influência da estátua foram impelidos a interpretá-los como representando Moisés perturbado pelo espetáculo de seu povo desviado do estado de graça, a dançar em torno de um ídolo. Mas essa interpretação teve de ser abandonada, porque nos fazia esperar vê-lo levantar-se no momento seguinte, quebrar as Tábuas e realizar sua vingança. Tal concepção, no entanto, não se harmonizaria com a intenção de fazer dessa figura, juntamente com mais três (ou cinco) figuras sentadas, uma parte do túmulo de Júlio II. Podemos agora retomar a interpretação abandonada, porque o Moisés que reconstruímos não vai se levantar nem jogar fora as Tábuas. O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta, mas os restos de um movimento já efetuado. Em seu primeiro transporte de fúria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tábuas; mas dominou a tentação e permanecerá sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento mesclado de desprezo. Tampouco atira fora as Tábuas, de maneira a que se quebrem sobre as pedras, pois foi por sua causa especial que controlou a ira; foi para preservá-las que manteve contida sua paixão. Ao dar expressão à sua cólera e indignação, teve de abandonar as Tábuas e a mão que as retinha foi afastada. Elas começaram a deslizar e ficaram em perigo de se quebrarem. Isso o trouxe a si. Lembrou-se de sua missão e, por causa dela, renunciou à satisfação de seus sentimentos. Sua mão retornou e salvou as Tábuas desapoiadas antes que caíssem realmente ao solo. Nessa atitude permaneceu imobilizada e foi nela que Michelangelo o retratou como guardião do túmulo.

À medida que nossos olhos percorrem a estátua de cima para baixo, a figura apresenta três estados emocionais distintos. As linhas do rosto refletem os sentimentos que predominaram; o meio da figura mostra os traços do movimento reprimido; e o pé ainda permanece na atitude da ação projetada. É como se a influência controladora houvesse avançado de cima para baixo. Nenhuma menção se faz até agora ao braço esquerdo e ele parece solicitar uma parte em nossa interpretação. A mão repousa no colo num gesto suave e segura como numa carícia a extremidade da barba que flui. É como se ela quisesse neutralizar a violência com que a outra mão havia maltratado a barba alguns instantes antes.

Mas aqui se objetará que, em última análise, este não é o Moisés da Bíblia, porque este realmente teve uma crise de ira, jogou longe as Tábuas e quebrou-as. Este Moisés deve se um homem inteiramente diferente, um novo Moisés da concepção do artista, sendo assim, Michelangelo deve ter tido a presunção de emendar o texto sacro e falsificar o caráter daquele santo homem. Poderemos imaginá-lo capaz de uma audácia que, quase se poderia dizer, aproxima-se de um ato de blasfêmia?

A passagem das Sagradas Escrituras que descreve a ação de Moisés na cena do Bezerro de Ouro é assim: (Êxodo, XXXII, 7) ‘Então disse o Senhor a Moisés: Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste subir do Egito, se tem corrompido; (8) E depressa se tem desviado do caminho que eu lhes tinha ordenado: fizeram para si um bezerro de fundição, e perante ele se inclinaram, e sacrificaram-lhe, e disseram: Estes são os teus deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito. (9) Disse mais o Senhor a Moisés: Tenho visto a este povo e eis que é povo obstinado. (10) Agora pois deixa-me, que o meu furor se acenda contra eles, e os consuma, e eu farei de ti uma grande nação. (11) Porém Moisés suplicou ao Senhor seu Deus, e disse: Oh, Senhor, por que se acende o teu furor contra o teu povo, que tu tiraste da terra do Egito com grande força e com forte mão? (…)’

‘(14) Então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo. (15) E voltou Moisés, e desceu do monte com as duas tábuas do testemunho na sua mão, tábuas escritas de ambas as bandas; de uma e de outra banda escritas estavam. (16) E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas. (17) E, ouvindo Josué a voz do povo que jubilava, disse a Moisés: Alarido de guerra há no arraial. (18) Porém ele disse: Não é alarido dos vitoriosos, nem alarido dos vencidos, mas o alarido dos que cantam eu ouço. (19) E aconteceu que, chegando ele ao arraial, e vendo o bezerro e as danças, acendeu-se o furor de Moisés, e arremessou as tábuas de suas mãos, e quebrou-as ao pé do monte; (20) E tomou o bezerro que tinham feito, e queimou-o no fogo, moendo-o até que se tornou em pó; e o espargiu sobre as águas, e deu-o a beber aos filhos de Israel.(…)’

‘(30) E aconteceu que no dia seguinte Moisés disse ao povo: vós pecastes grande pecado: agora porém subirei ao Senhor; porventura farei propiciação por vosso pecado. (31) E assim tornou Moisés ao Senhor, e disse: Ora, este povo pecou pecado grande, fazendo para si deuses de ouro. (32) Agora pois perdoa o seu pecado, senão risca-me, peço-te, do teu Livro, que tens escrito. (33) Então disse o Senhor a Moisés: Aquele que pecar contra mim, a este riscarei eu do meu livro. (34) Vai pois agora, conduze este povo para onde te tenho dito: eis que o meu anjo irá adiante de ti; porém no dia de minha visitação, visitarei neles o seu pecado. (35) Assim feriu o Senhor o povo, porquanto fizeram o bezerro que Aarão tinha feito.’

É impossível ler a passagem acima à luz da crítica moderna da Bíblia sem encontrar provas de que ela é uma reunião canhestra de diversas fontes. No versículo 8 o próprio Senhor diz a Moisés que seu povo se arruinou e fez para si um ídolo; e Moisés intercede pelos transgressores. Entretanto, ele fala a Josué como se nada soubesse disso (18) e tem subitamente a ira despertada quando vê a cena da adoração do Bezerro de Ouro (19). No versículo 14, já obteve um perdão de Deus para o seu povo transviado, mas, no entanto, no versículo 31 retorna à montanha para implorar esse perdão e conta a Deus do pecado de seu povo, sendo-lhe assegurado o adiamento do castigo. O versículo 35 fala de uma visitação do seu povo pelo Senhor, sobre a qual nada mais nos é informado, enquanto que os versículos 20-30 descrevem a punição que o próprio Moisés aplicou. É do conhecimento geral que as partes históricas da Bíblia, que tratam do Êxodo, estão cheias de incongruências e contradições ainda mais gritantes.

A Renascença naturalmente não tinha tal atitude crítica para com o texto da Bíblia, mas tinha de aceitá-la como um todo harmônico, resultando daí não ser a passagem em questão um tema muito bom para representação. De acordo com as Escrituras, Moisés já se achava informado da idolatria de seu povo e ficara do lado da suavidade e do perdão; não obstante, quando viu o Bezerro de Ouro e a multidão a dançar, foi tomado de um súbito frenesi de raiva. Dessa maneira, não seria surpreendente para nós descobrir que o artista, ao retratar a reação do herói a essa dolorosa surpresa, se houvesse se desviado do texto por motivos internos. Ademais, esses desvios do texto das escrituras sob pretextos muito mais leves não eram de maneira alguma fora do comum ou proibidos aos artistas. Um famoso quadro de Parmigiano, propriedade de sua cidade natal, representa Moisés sentado no alto de uma montanha e arremessando as Tábuas ao solo, embora a Bíblia diga expressamente que ele as quebrou ‘ao pé do monte’. Mesmo a representação de um Moisés sentado não encontra apoio no texto e parece antes corroborar aqueles críticos que sustentam que a estátua de Michelangelo não pretende registrar nenhum momento particular da vida do profeta.

Mais importante que sua infidelidade ao texto das Escrituras é a alteração que, em nossa suposição, Michelangelo fez no caráter de Moisés. O Moisés da lenda e da tradição tinha um temperamento impetuoso e era sujeito a crises de paixão. Foi num transporte de ira divina desse tipo que matou um egípcio que estava maltratando um israelita, e teve de fugir do país para o deserto; sendo numa explosão semelhante que quebrou as Tábuas da Lei, escritas pelo próprio Deus. A tradição, ao registrar tal característica, é imparcial e preserva a impressão de uma grande personalidade que outrora viveu. Mas Michelangelo colocou um Moisés diferente na tumba do Papa, um Moisés superior ao histórico ou tradicional. Modificou o tema das Tábuas quebradas; não permite que Moisés as quebre em sua ira, mas faz que ele seja influenciado pelo perigo de que se quebrem e o faz acalmar essa ira, ou, pelo menos, impedi-la de transformar-se em ato. Dessa maneira, acrescentou algo de novo e mais humano à figura de Moisés; de modo que a estrutura gigantesca, com a sua tremenda força física, torna-se apenas uma expressão concreta da mais alta realização mental que é possível a um homem, ou seja, combater com êxito uma paixão interior pelo amor de uma causa a que se devotou.

Completamos agora a nossa interpretação da estátua de Michelangelo, embora ainda se possa perguntar que motivos induziram o escultor a escolher a figura de Moisés, e de um Moisés tão grandemente alterado, para decoração do túmulo de Júlio II. Na opinião de muitos, esses motivos podem ser encontrados no caráter do Papa e nas relações de Michelangelo com ele. Júlio II tinha afinidades com Michelangelo no que se referia haver tentado realizar objetivos grandes e formidáveis e, especialmente, projetos em grande escala. Era um homem de ação e tinha um propósito definido, o de unir a Itália sob a supremacia papal. Desejou realizar sozinho o que deveria levar ainda vários séculos para ser realizado e, mesmo então, somente através da conjunção de forças estranhas; trabalhou só, com impaciência, no curto período de soberania que lhe foi concedido, e utilizou meios violentos. Podia apreciar Michelangelo como um homem de sua própria espécie, mas muitas vezes o fez sofrer com sua ira repentina e sua completa falta de consideração pelos outros. O artista sentia em si próprio a mesma violenta força de vontade e, como pensador mais introspectivo, pode ter tido uma premonição do fracasso a que ambos se achavam condenados. Assim, esculpiu seu Moisés na tumba do Papa, não sem uma censura ao pontífice morto, mas também como uma advertência a si próprio, elevando-se, pois, através da autocrítica, a um nível superior à sua própria natureza.

IV
Em 1863, um inglês, Watkiss Lloyd, dedicou um livrinho ao Moisés de Michelangelo. Consegui encontrar esse pequeno ensaio de 46 páginas e li-o com uma mistura de sentimentos. Mais uma vez tive oportunidade de verificar em mim próprio que motivos indignos e pueris entram em nossos pensamentos e atuam mesmo numa causa séria. Meu primeiro sentimento foi de pesar por haver o autor antecipado uma parte tão grande de meus pensamentos, a qual me parecia preciosa por ser o resultado de meus próprios esforços; e só depois disso é que pude extrair prazer de sua inesperada confirmação de minha opinião. Nossos pontos de vista, contudo, divergem num ponto muito importante.

Lloyd observa em primeiro lugar que as descrições costumeiras da figura são incorretas e que Moisés não se encontra no ato de levantar-se que a mão direita não está agarrando a barba, mas que apenas o dedo indicador repousa sobre ela. Lloyd também reconhece, e isso é muito mais importante, que a atitude retratada só pode ser explicada pela postulação de uma outra anterior, que não se acha representada, e que o desenho da madeixa esquerda da barba puxada para a direita significa que a mão direita e o lado esquerdo da barba, num estágio anterior, estiveram em contato mais estreito e natural. Mas sugere outra maneira de reconstruir o contato anterior que deve necessariamente ser presumido. De acordo com ele, não fora a mão que estivera mergulhada na barba, mais sim esta que se achara onde a mão agora se encontra. Devemos, diz ele, imaginar que exatamente antes da interrupção súbita a cabeça da estátua estava voltada bem para a direita, sobre a mão que, então como agora, se achava segurando as Tábuas da Lei. A pressão (das Tábuas) sobre a palma da mão fez com que os dedos se abrissem naturalmente sob as fluentes madeixas da barba e o repentino movimento da cabeça para o outro lado resultou em que parte da barba ficou detida por um instante pela mão imóvel, formando a curva de cabelos que deve ser encarada como um sinal do curso que aquela tomou — o ‘seu rastro’, para empregar a própria palavra utilizada por Lloyd.

Rejeitando a outra possibilidade, a da mão direita ter estado anteriormente em contato com o lado esquerdo da barba, Lloyd permitiu-se influenciar por uma consideração que mostra quão próximo chegou de nossa interpretação. Diz que não era possível ao profeta, mesmo em muito grande agitação, estender a mão para puxar a barba até a direita, porque, nesse caso, os dedos se encontrariam numa posição completamente diferente e, além disso, tal movimento teria permitido que as Tábuas escorregassem, uma vez que se achariam sustentadas apenas pela pressão do braço direito — a menos que, no esforço de Moisés para salvá-las no último momento, nós a concebêssemos como ‘agarradas por um gesto tão desajeitado que imaginá-lo é uma profanação’.

É fácil perceber o que o escritor passou por cima. Interpretou corretamente as anomalias da barba como indicadoras de um movimento anterior, mas deixou de aplicar a mesma explicação aos pormenores, tão pouco naturais quanto aquelas, da posição das Tábuas. Examina apenas os dados relacionados com a barba e não os ligados às Tábuas, cuja posição presume ser a original. Dessa maneira, fecha a porta a uma concepção como a nossa que, pelo exame de certos pormenores insignificantes, chegou a uma interpretação inesperada do significado e do objetivo da figura como um todo.

Mas, e se ambos nos tivermos extraviado por um caminho errado? Se houvermos tomado de maneira demasiado séria e profunda uma visão de detalhes que nada são para o artista, detalhes que introduziu de modo inteiramente arbitrário ou por razões puramente formais, sem nenhuma intenção oculta por trás deles? Se houvermos partilhado o destino de tantos intérpretes que pensaram perceber muito claramente coisas que o artista não pretendeu, nem consciente, nem inconscientemente? Não posso dizer. Não posso dizer se é razoável creditar Michelangelo — artista em cujas obras existem tantos pensamentos lutando por expressão — com uma falta de precisão tão elementar e, especialmente, se isso pode ser presumido em relação às notáveis e singulares características da estátua que estamos examinando. E, finalmente, nos será permitido ressaltar, com toda a modéstia, que o artista não é menos responsável que os intérpretes pela obscuridade que circunda sua obra. Em suas criações, com bastante freqüência, Michelangelo foi até o limite máximo do que é exprimível em arte; e talvez na estátua de Moisés não tenha alcançado um êxito completo, se é que sua intenção era tornar visível a passagem de uma violenta rajada de paixão através dos sinais deixados por ela na calma que se seguiu.



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