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Uma alegorização pode até mesmo estruturar-se a partir de um processo metafórico, a
partir do trabalho com imagens sugeridas por metáforas. Tal caso pode inclusive ser
observado em Platão, nos livros VI e VII do seu A República (IV a.C.), quando as ideias que
levam a ideias e a outras ideias até que se chegue ao princípio absoluto são repetidas vezes
transmitidas a Glauco pela figura evocada de Sócrates através de imagens, explicações via
metáforas. Não à toa o enredo dos dois livros, dada a maior proximidade do pensamento
platônico para com o mito, é tratado tanto como Mito quanto como Alegoria da Caverna,
provocadora de leituras e releituras, arbitrárias e intencionais, de acordo com o contexto
histórico em que retomadas são.
De maneira contrária, nas histórias que em La frontera se agregam a imaginários,
apesar destas também se apoiarem no trabalho com metáforas, o processo de metaforização
em que se ancoram gera não uma alegoria; mas, antes, uma metáfora ampla que terá seu lugar
somente no contexto sobre o qual se debruça, buscando inserir-se dentro de um temário de
força já bicentenária, a migração, os (des)caminhos de migração na zona fronteiriça de
confluência que compartem México e Estados Unidos.
Ainda com vistas a tratar da relação entre imagem e literatura, cabe agora expor
considerações sobre tal leitura na outra obra componente do corpus deste estudo de
doutoramento: o também romance em contos ...y no se lo tragó la tierra. Se em Fuentes
sobressai a relação com o que podemos chamar de imagem verbal (categoria em que se insere
o tropo metáfora mesmo quando, no caso da ampla metáfora, intensifica-se como conceito), a
ligação do literário com a imagem em Rivera parte do estilo lacônico do texto para com a
fotografia e a pintura.
A elipse é a forma e o estilo que permitem a leitura do laconismo no texto de Rivera.
Configura seus nexos de modo que, de fato, possa ser percebida certa harmonização de forma
elíptica (da elipse matemática mesmo) no aparente “caos”, na aparente desorganização
contida nas histórias de um chicano narrador sobre doze meses de migração e exploração de
trabalho rural, braçal e as relações de exclusão e tentativa de inclusão vividas por ele e sua
família em solo estadunidense, durante meados dos anos de 1950. A configuração elíptica da
obra revela de modo curioso a relação entre dois números desde os quais se apoiam a volta da
elipse na narrativa. O número 1 e 2 estreitam laços já na estruturação do romance. Os doze
(12) contos que compõem o corpo narrativo da obra estão ladeados por dois outros
localizados entre uma ponta e outra da narrativa. Apertura e cierre, início e fim, curiosamente
os dois contos podem, inclusive, ser invertidos, ter sua posição oposta em cada ponta do
narrado que, ainda assim, irão manter sua função de Introdução e Conclusão, artifício que nos
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remete à lembrança de que Tomás Rivera, autor da obra, foi não só ficcionista mas também
importante e atuante acadêmico dentro das letras chicanas nos Estados Unidos.
Pois bem, a essa estruturação do doze (12) ladeado por 1 (Introdução) e 2
(Conclusão) se apoia outra: uma estampa introdutória para cada um desses doze contos que
sucedem o conto-introdução e que precedem o conto-conclusão (e mais uma, para esse
mesmo capítulo-conclusão). Dessa maneira, temos que, da estruturação 1 (12 e 12) (1) 2, lê-se
uma introdução que precede doze estampas e doze contos antecedentes de uma última
estampa e uma conclusão, um conto-conclusão em estrita relação de troca com a história
introdutória, sem perda do ciclo elíptico-narrativo, com a conservação daquilo que em ...y no
se lo tragó la tierra se pode chamar de elipse romanesca dada ao todo narrativo da obra, uma
reunião supostamente desordenada de contos.
Ora, se considerarmos que a elipse como figuração matemática se trata de uma curva
plana fechada na qual todos os pontos apresentam uma propriedade comum, que é a soma das
suas distâncias em relação a dois pontos fixos no interior dessa mesma curva, estabelece-se
desde já uma analogia possível em que os dois pontos fixos (ainda que em constante
possibilidade de troca de posição como eixos, razão pela qual podem ser mais bem entendidos
como focos) na referida obra de T. Rivera são seus contos 1, de abertura, e 2, de fechamento;
e todos os pontos restantes estão reunidos também no interior da curva elíptica narrativa,
através da relação 1 e 1 (uma estampa, um conto-capítulo), repetida doze vezes, com suas
distâncias relacionadas (não de forma linear, herança rulfoniana da qual falarei em posterior
capítulo-análise dedicado ao texto riverano) para com os nexos que se estabelecem com os
pontos “fixos” Introdução e Conclusão, conforme figura que poderá ser vista no primeiro
tópico do segundo capítulo do presente trabalho.
Estabelecida a “visão” dessa elipse como imagem formadora, ou seja, que empresta
seu “desenho” à forma do texto, é importante anotar, ainda, de que maneira são orquestrados
os recursos a permitir falar-se, também de modo relevante, em implícitos, em subentendidos,
em omissão de palavras (características próprias da elipse gramatical, além de propriedade
cara ao gênero conto do qual se forma o romance ora em destaque) em ...y no se lo tragó. A
relação de leitura da obra supracitada é feita em um jogo de interdependência para com o
leitor, pois é dele, receptor, que se espera a procura e o estabelecimento dos nexos que a
narrativa deixa aparentemente de abordar, deixa aparentemente “no ar”. Entram então em
cena a estampa
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, como um micro episódio narrativo, um micro conto, e o conto breve que a
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Remeto o leitor para a nota 6, onde busquei apresentar algumas das definições nas quais pauto minha
abordagem para o termo estampa.
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