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PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO



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PENSAMENTO PÓS-ABISSAL COMO UM SABER ECOLÓGICO

O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social, no seu sentido mais amplo, assume diferentes formas conforme seja determinada por uma linha abissal ou não-abissal, e da noção de que enquanto persistir a exclusão definida abissalmente não será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo, confrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo moderno deste lado da linha. Uma concepção pós-abissal do marxismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cidadãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem um tratamento sub-humano47.

Assim, o reconhecimento da persistência do pensamento abissal é condição sine qua non para começar a pensar e a agir para além dele. Sem esse reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensamento derivativo, que continuará a reproduzir as linhas abissais por mais antiabissal que se autoproclame. Pelo contrário, o pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois envolve uma ruptura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade ocidental. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significa pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha, precisamente porque ele é o domínio do impensável no Ocidente moderno. A emergência do ordenamento da apropriação/violência só poderá ser enfrentada se situarmos nossa perspectiva epistemológica na experiência social do outro lado da linha, isto é, do Sul global, concebido como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo48. O pensamento pós-abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul. Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A ecologia de saberes se baseia na idéia de que o conhecimento é interconhecimento49.

Assim, a primeira condição para um pensamento pós-abissal é a co-presença radical. A co-presença radical significa que práticas e agentes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos igualitários. Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que requer abandonar a concepção linear de tempo50. Só assim será possível ir além de Hegel, para quem ser membro da humanidade histórica — isto é, estar deste lado da linha — significava: no século V a.C., ser um grego e não um bárbaro; nos primeiros séculos da era cristã, ser um cidadão romano e não um grego; na Idade Média, ser um cristão e não um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem do Novo Mundo; e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeus deslocados da América do Norte) e não um asiático, estagnado na história, ou um africano, que sequer faz parte dela51. Além disso, a co-presença radical pressupõe a abolição da guerra, que, juntamente com a intolerância, constitui a negação mais radical da co-presença.

Como ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a idéia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico52. Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta como conhecimento. No período de transição que se inicia, em que ainda persistem as perspectivas abissais de totalidade e unidade, provavelmente precisamos de uma epistemologia geral residual ou negativa para seguir em frente: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral.

O contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por um lado, a idéia da diversidade sociocultural do mundo se fortaleceu nas três últimas décadas, favorecendo o reconhecimento da pluralidade epistemológica como uma de suas dimensões. Por outro lado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo, uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal talvez seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento válida e rigorosa. Ortega y Gasset propôs uma distinção radical entre crenças e idéias, entendendo por estas últimas a ciência ou a filosofia53. A distinção reside em que as crenças fazem parte de nossa identidade e subjetividade, enquanto as idéias nos são exteriores. Enquanto nossas idéias nascem da dúvida e permanecem nela, nossas crenças nascem da ausência de dúvida. No fundo, a distinção é entre ser e ter: somos as nossas crenças, temos idéias. O que é característico do nosso tempo é o fato de a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das idéias e ao campo das crenças. A crença na ciência excede em muito o que as idéias científicas nos permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epistemológica na ciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com a crescente crença popular na ciência. A relação entre crenças e idéias como duas entidades distintas passa a ser uma relação entre duas maneiras de experienciar socialmente a ciência. Essa dualidade faz com que o reconhecimento da diversidade cultural do mundo não signifique necessariamente o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo.

Nesse contexto, a ecologia de saberes é basicamente uma contra-epistemologia. O impulso básico para o seu avanço resulta de dois fatores. O primeiro consiste nas novas emergências políticas de povos do outro lado da linha como parceiros da resistência ao capitalismo global: globalização contra-hegemônica. Em termos geopolíticos, trata-se de sociedades periféricas do sistema-mundo moderno onde a crença na ciência moderna é mais tênue, onde é mais visível a vinculação da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e imperial, onde conhecimentos não-científicos e não-ocidentais prevalecem nas práticas cotidianas das populações. O segundo fator é uma proliferação sem precedentes de alternativas, as quais porém não podem ser agrupadas sob a alçada de uma única alternativa global, visto que globalização contra-hegemônica se destaca pela ausência de uma alternativa no singular. A ecologia de saberes procura dar consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo.

Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também ignorâncias. Não existe uma unidade de conhecimento, assim como não existe uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tão heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento. Dada essa interdependência, a aprendizagem de certos conhecimentos pode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância de outros. Desse modo, na ecologia de saberes a ignorância não é necessariamente um estado original ou ponto de partida. Pode ser um ponto de chegada. Pode ser o resultado do esquecimento ou da desaprendizagem implícito num processo de aprendizagem recíproca. Assim, num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes é crucial a comparação entre o conhecimento que está sendo aprendido e o conhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido. A ignorância só é uma forma desqualificada de ser e de fazer quando aquilo que se aprende vale mais do que aquilo que se esquece. A utopia do interconhecimento consiste em aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios. O princípio da prudência que subjaz à ecologia de saberes (do qual falaremos mais adiante) convida a uma reflexão mais profunda sobre a diferença entre a ciência como conhecimento monopolista e a ciência como parte de uma ecologia de saberes.

Como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se encontra distribuído socialmente de forma equitativa — nem poderia estar, uma vez que o seu desígnio original foi converter este lado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto de conhecimento. As intervenções no mundo real por ele propiciadas tendem a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhecimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser traçadas, a luta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas na idéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico. Além do fato de que tal distribuição é impossível nas condições do capitalismo e do colonialismo, o conhecimento científico tem limites intrínsecos quanto ao tipo de intervenção que promove no mundo real. Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico. Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis por meio das epistemologias feministas e pós-coloniais54, e, por outro lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos.

Uma das premissas básicas da ecologia de saberes é que todos os conhecimentos têm limites internos, referentes às intervenções no real que eles permitem, e externos, decorrentes do reconhecimento de intervenções alternativas propiciadas por outras formas de conhecimento. Por definição, as formas de conhecimento hegemônicas só conhecem limites internos, de modo que o uso contra-hegemônico da ciência moderna só é possível mediante a exploração paralela de seus limites internos e externos como parte de uma concepção contra-hegemônica de ciência. É por isso que o uso contra-hegemônico da ciência não pode se limitar à ciência. Só faz sentido no âmbito de uma ecologia de saberes.

Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como intervenção no real — não como representação do real — é a medida do realismo. A credibilidade da construção cognitiva é mensurada pelo tipo de intervenção no mundo que ela proporciona, auxilia ou impede. Como a avaliação dessa intervenção sempre combina o cognitivo com o ético-político, a ecologia de saberes distingue a objetividade analítica da neutralidade ético-política. Hoje em dia ninguém questiona o valor geral das intervenções no real propiciadas pela ciência moderna por meio de sua produtividade tecnológica. Mas isso não deve nos impedir de reconhecer intervenções propiciadas por outras formas de conhecimento. Em muitas áreas da vida social a ciência moderna tem demonstrado uma indiscutível superioridade em relação a outras formas de conhecimento, mas há outros modos de intervenção no real que hoje nos são valiosos e para os quais a ciência moderna em nada contribuiu. É o caso, por exemplo, da preservação da biodiversidade possibilitada por formas de conhecimento camponesas e indígenas, que se encontram ameaçadas justamente pela crescente intervenção da ciência moderna55. E não deveria nos impressionar a riqueza dos conhecimentos que lograram preservar modos de vida, universos simbólicos e informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base exclusivamente na tradição oral? Dirá algo sobre a ciência o fato de que por intermédio dela isso nunca teria sido possível?

Eis o impulso para a co-presença igualitária (como simultaneidade e contemporaneidade) e para a incompletude. Dado que nenhuma forma de conhecimento pode responder por todas as intervenções possíveis no mundo, todas as formas de conhecimento são, de diferentes maneiras, incompletas. A incompletude não pode ser erradicada, porque qualquer descrição completa das variedades de saber não incluiria a forma de saber responsável pela própria descrição. Não há conhecimento que não seja conhecido por alguém para certos objetivos. Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos. Todos os conhecimentos são testemunhais porque aquilo que conhecem sobre o real (sua dimensão ativa) é sempre duplicado por aquilo que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento (sua dimensão subjetiva). Ao questionar a distinção sujeito/ objeto, as ciências da complexidade dão conta desse fenômeno mas o confinam às práticas científicas. A ecologia de saberes expande o caráter testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igualmente as relações entre o conhecimento científico e o não-científico, ampliando assim o alcance da intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa.

Num regime de ecologia de saberes, a busca de intersubjetividade é tão importante quanto complexa. Uma vez que diferentes práticas de conhecimento têm lugar em diferentes escalas espaciais e com diferentes durações e ritmos, a intersubjetividade requer a disposição para conhecer e agir em diferentes escalas (interescalaridade) e com diferentes durações (intertemporalidade). Muitas das experiências subalternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o único capaz de gerar experiências globais. Dado porém que a resistência contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, é imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiências subalternas por meio de ligações entre o local e o global. Desse modo, a ecologia de saberes tem de ser transescalar56.

Além disso, a coexistência de diferentes temporalidades ou durações em diferentes práticas de conhecimento requer uma expansão da moldura temporal. Na medida em que as modernas tecnologias tendem a favorecer a moldura temporal e a duração da ação estatal, tanto na administração pública como na política (o ciclo eleitoral, por exemplo), as experiências subalternas do Sul global têm sido forçadas a responder tanto à curta duração das necessidades imediatas de sobrevivência como à longa duração do capitalismo e do colonialismo. Mesmo nas lutas subalternas podem estar presentes diferentes durações. A luta pela terra empreendida pelos camponeses empobrecidos no Brasil, por exemplo, pode incluir: a duração do Estado moderno, quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta pela reforma agrária; a duração da escravatura, quando os afro-descendentes lutam pela recuperação dos quilombos; ou ainda a duração do colonialismo, quando os povos indígenas lutam para reaver seus territórios históricos, dos quais foram esbulhados pelos conquistadores.

A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato, mas como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real. Um pragmatismo epistemológico é justificado acima de tudo pelo fato de que as experiências de vida dos oprimidos lhes são inteligíveis por via de uma epistemologia das conseqüências. No mundo em que vivem, as conseqüências vêm sempre primeiro que as causas.

A ecologia de saberes assenta na idéia pragmática de que é necessária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra-se pois nas relações entre saberes, nas hierarquias que se geram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possível sem essas hierarquias. No entanto, em vez de subscrever uma hierarquia única, universal e abstrata entre os saberes, estabelece hierarquias em conformidade com o contexto, à luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. Hierarquias concretas emergem do valor relativo de intervenções alternativas no mundo real. Entre os diferentes tipos de intervenção pode existir complementaridade ou contradição57. Sempre que há intervenções no real que em princípio podem ser levadas a cabo por diferentes sistemas de conhecimento, as escolhas concretas das formas de conhecimento a privilegiar devem ser informadas pelo princípio da prudência, que no contexto da ecologia de saberes consiste em dar preferência às formas de conhecimento que garantam a maior participação possível dos grupos sociais envolvidos na concepção, execução, controle e fruição da intervenção.

O exemplo a seguir ilustra bem os perigos de substituir um tipo de conhecimento por outro com base em hierarquias abstratas. Nos anos 1960, os milenares sistemas de irrigação dos campos de arroz da ilha de Bali, na Indonésia, foram substituídos por sistemas científicos promovidos pelos prosélitos da Revolução Verde. Os sistemas tradicionais se baseavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiosos ancestrais e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídos precisamente por serem considerados produtos da magia e da superstição, daquilo que foi depreciativamente designado como "culto do arroz". Só que a substituição teve resultados desastrosos para a cultura do arroz, cuja colheita decresceu drasticamente nos anos subseqüentes. Diante disso, os sistemas científicos tiveram de ser abandonados e os sistemas tradicionais restaurados. Esse caso ilustra a importância do princípio da prudência quando lidamos com uma possível complementaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento. A suposta incompatibilidade entre dois sistemas de conhecimento (o religioso e o científico) para a realização da mesma intervenção (a irrigação dos campos de arroz) resultou de uma má avaliação (má ciência) provocada precisamente por juízos abstratos, baseados na superioridade abstrata do conhecimento científico. Trinta anos depois da desastrosa intervenção técnico-científica, a modelagem computacional — uma área das novas ciências ou ciências da complexidade — veio demonstrar que as seqüências da água geridas pelos sacerdotes da deusa Dewi-Danu eram as mais eficientes possíveis, portanto mais eficientes do que as do sistema científico de irrigação58.

Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o policiamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longe mais decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Assim, em razão do "epistemicídio" em massa perpetrado nos últimos cinco séculos, desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cognitivas. Para recuperar algumas dessas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-ocidentais, essas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também diferentes categorias, universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor.

As profundas diferenças entre saberes levantam a questão da incomensurabilidade, questão utilizada pela epistemologia abissal para desacreditar a mera possibilidade de uma ecologia de saberes. Um exemplo ajuda a ilustrar essa questão. Será possível estabelecer um diálogo entre a filosofia ocidental e a filosofia africana? Formulada assim, a pergunta parece só permitir uma resposta positiva, uma vez que ambas são filosofia (o mesmo argumento pode ser usado em relação a um diálogo entre religiões). No entanto, para muitos filósofos ocidentais e africanos não é possível referirmo-nos a uma filosofia africana porque existe apenas uma filosofia, cuja universalidade não é posta em causa pelo fato de que até o momento seu desenvolvimento se deu sobretudo no Ocidente. Na África, tal é a posição dos filósofos chamados "modernistas". Já para os "tradicionalistas" há filosofia africana, mas como ela está embebida na cultura africana é incomensurável com a filosofia ocidental e deve seguir seu desenvolvimento autônomo59. Mas, além dessas duas posições, há perspectivas para as quais existem muitas filosofias e é possível haver entre elas um diálogo, um enriquecimento mútuo. Essas perspectivas se vêem freqüentemente confrontadas com os problemas da incomensurabilidade, da incompatibilidade e da ininteligibilidade recíprocas, os quais procuram resolver explorando formas de complementaridade. Tudo depende do uso de procedimentos adequados de tradução intercultural, mediante os quais é possível identificar preocupações comuns e aproximações complementares, assim como, está claro, contradições intransponíveis60.

O seguinte exemplo ilustra o que está em jogo. O filósofo ganense Kwasi Wiredu afirma que na língua akan (do grupo étnico a que pertence) não é possível traduzir o preceito cartesiano "Cogito, ergo sum", já que nela não há palavras para exprimir tal idéia. Em akan, "pensar" significa "medir algo", o que não faz sentido quando ligado à idéia de existir. E o "existo" é igualmente dificílimo de exprimir, porque o equivalente mais próximo é algo semelhante a "estou aí". O locativo "aí", segundo Wiredu, seria suicida tanto do ponto de vista da epistemologia como da metafísica do cogito61. Ou seja, a língua permite exprimir certas idéias e não outras. Mas isso não significa que a relação entre a filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. Como Wiredu tenta demonstrar, é possível desenvolver argumentos autônomos com base na filosofia africana não só sobre o motivo pelo qual ela não poder exprimir o cogito, mas também sobre as muitas idéias alternativas que ela pode exprimir e a filosofia ocidental não pode62.

A ecologia de saberes não ocorre apenas no nível do lógos, mas também no nível do mythos. A idéia de "emergência" ou a noção do "ainda-não-ser" de Bloch lhe são essenciais63. A intensificação da vontade resulta de uma leitura potencializadora de tendências objetivas, que empresta força a uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, mediante uma compreensão mais profunda das possibilidades humanas com base em saberes que, ao contrário do científico, privilegiam a força interior em vez da força exterior, a natura naturans em vez da natura naturata64. Por meio desses saberes é possível alimentar o valor intensificado de um empenho, o que é incompreensível do ponto de vista do mecanicismo positivista e funcionalista da ciência moderna. Desse empenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação, capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras inconformistas, desestabilizadoras e mesmo rebeldes. O que está em jogo é a criação de uma previsão ativa baseada na riqueza da diversidade não-canônica do mundo e de um grau de espontaneidade baseado na recusa a deduzir o potencial do factual. Dessa forma, os poderes constituídos deixam de ser destino, podendo ser realisticamente confrontados com os poderes constituintes. O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canônica das monoculturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível.

A ecologia de saberes é uma epistemologia desestabilizadora na medida em que se empenha numa crítica radical da política do possível, sem ceder a uma política impossível. Central a uma ecologia de saberes não é a distinção entre estrutura e agência, mas a distinção entre ação conformista e aquilo que denomino "ação-com-clinamen"65. A ação conformista é uma prática rotineira, reprodutiva e repetitiva que reduz o realismo àquilo que existe e apenas porque existe. Para a minha noção de ação-com-clinamen tomo de Epicuro e Lucrécio o conceito de clinamen, entendido como o quiddam inexplicável que perturba a relação entre causa e efeito, ou seja, como a capacidade de desvio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito: o clinamen é aquilo que faz com que os átomos deixem de parecer inertes e revelem um poder de inclinação, de movimento espontâneo66. Ao contrário do que se dá na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-clinamen não assenta numa ruptura dramática, mas num ligeiro desvio cujos efeitos cumulativos promovem complexas e criativas combinações entre indivíduos e grupos sociais, assim como ocorre entre os átomos67. O clinamen não recusa o passado; pelo contrário, assume-o e redime-o pelo modo como dele se desvia. Seu potencial para o pensamento pós-abissal decorre de sua capacidade de atravessar as linhas abissais.

A ocorrência de ação-com-clinamen é em si mesma inexplicável. O papel de uma ecologia de saberes a esse respeito será somente o de identificar as condições que maximizam a probabilidade de uma tal ocorrência e definir o horizonte de possibilidades em que o desvio virá a "operar". A ecologia de saberes é ao mesmo tempo constituída por sujeitos desestabilizadores — individuais ou coletivos — e constitutiva deles. A subjetividade capaz da ecologia de saberes é uma subjetividade especialmente dotada de capacidade, energia e vontade para agir com clinamen. A própria construção social de uma tal subjetividade necessariamente implica recorrer a formas excêntricas ou marginais de sociabilidade ou subjetividade dentro ou fora da modernidade ocidental, formas que se recusaram a ser definidas de acordo com os critérios abissais.

 


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