Neblina Sobre Mannheim Bernhard Schlink e Walter Popp



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testemunho de Weinstein. Segundo qualquer medida, mesmo nacional-socialista, a sentença tinha sido um erro judiciário, e a minha instrução criminal era uma instrução

falseada. Eu fora enganado numa trama em que o Tyberg e o Dohmke eram as vítimas escolhidas. As minhas recordações tornaram-se mais nítidas. Na secretária do Tyberg

tinham-se encontrado documentos escondidos que serviam de base a um projecto com elevada probabilidade de sucesso, importantíssimo para a guerra, que havia sido

inicialmente desenvolvido pelo Tyberg e pelo seu grupo, mas que depois fora, aparentemente, interrompido. Os acusados tinham sempre feito notar, perante mim e perante

o Tribunal, que nunca teriam podido desenvolver as duas vertentes de investigação simultaneamente. Tinham interrompido uma delas apenas para mais tarde a reatarem.

Tudo aquilo estava guardado em segredo absoluto, e a sua descoberta também fora tão emocionante que haviam velado sobre ela com os ciúmes próprios dos cientistas.

Apenas por essa razão, o esconderijo na secretária. Com isso, eles talvez se tivessem safado, mas o Weinstein referia ainda uma conversa entre o Dohmke e o Tyberg,

em que ambos haviam combinado abafar a descoberta para causar um fim rápido da guerra, pelo preço da derrota alemã. E, agora, esta conversa nunca tinha acontecido.

A história da sabotagem tinha provocado, naquele tempo, grande indignação. O segundo ponto da acusação de desonra da raça já então não me convencera; as minhas investigações

não haviam encontrado nenhuma prova de que o Tyberg tivesse tido relações com uma trabalhadora forçada judia. Também fora condenado à morte por essa razão. Reflecti

sobre quem das SS, e quem da fábrica, poderia ter tecido aquela trama.

O trânsito sobre a Golden Gate Bridge fluía ininterruptamente. Para onde quereriam todos eles ir? Fui de carro até à entrada, estacionei debaixo do monumento ao

construtor e fui a pé até meio da ponte. Era o único peão. Olhei para baixo, para o brilho metálico do Pacífico. Por detrás de mim, os transportes rodoviários rumorejavam

numa cadência igual e insensível. Um vento glacial assobiava pelos cabos de sustentação. Sentia-me gelado.

Foi com muita dificuldade que voltei a encontrar o meu hotel. Anoitecia rapidamente. Perguntei ao porteiro onde poderia comprar uma garrafa de Sambuca. Mandou-me

à liquor sto-re, a duas ruas de distância. Em vão, passei revista a todas as prateleiras. O dono da loja lamentava não ter Sambuca, mas tinha algo parecido, se eu

não queria experimentar o Southern Comfort. Meteu a garrafa num saco de papel que girou no topo, de modo a fechá-lo. No caminho de regresso ao hotel, comprei um

hambúrguer. Com a minha gabardina, o saco de papel castanho numa mão e o hambúrguer na outra, sentia-me como um comparsa num filme policial americano de segunda

categoria.

No quarto do hotel, deitei-me sobre a cama e liguei o televisor. O meu copo de lavar os dentes estava embrulhado num saco de celofane; rasguei-o e enchi-o. O Southern

Comfort não tem absolutamente nada a ver com a Sambuca. Contudo, sabia-me bem e descia muito naturalmente pela minha garganta. O football na televisão também não

tinha rigorosamente nada a ver com o nosso futebol. Mas percebi as regras e segui o jogo com um entusiasmo crescente.

Pouco tempo depois, batia palmas quando a minha equipa conseguia avançar um bom bocado com a bola. Depois, diverti-me com os anúncios que interrompiam o jogo. Por

fim, devo ter berrado quando a minha equipa ganhou porque alguém bateu na parede. Tentei levantar-me e bater em resposta, mas a cama estava sempre a empinar-se de

lado quando eu queria sair dela. Depois, isso tinha deixado de ser importante. O que me interessava mais era que ainda conseguia encher o copo. Deixei um último

golo dentro da garrafa. Para a viagem de regresso de avião.

Acordei a meio da noite. Sentia-me bêbado. Estava deitado vestido sobre a cama, a televisão cuspia imagens. Quando a desliguei, a minha cabeça implodiu. Consegui

despir o casaco antes de voltar a adormecer.

Ao despertar, por um instante não soube onde estava. O meu quarto estava limpo e arrumado, o cinzeiro vazio e o copo outra vez embrulhado em celofane. O meu relógio

de pulso marcava duas e meia. Fiquei sentado durante muito tempo na casa de banho, segurando a cabeça. Quando lavei as mãos, evitei olhar para o espelho. Encontrei

um pacotinho de Saridon no meu nécessaire, e vinte minutos depois já não tinha dores de cabeça. Mas, a cada movimento, os fluidos do meu cérebro batiam fortemente

contra as paredes do crânio, e o estômago gritava por comida e ao mesmo tempo dizia-me que não iria guardá-la. Se estivesse em casa, teria feito um chá de camomila,

mas não sabia como se dizia camomila em inglês, nem onde arranjá-la, nem de que maneira poderia aquecer a água.

Tomei um duche, primeiro quente, depois frio. No Tea Room do hotel, serviram-me chá preto e torradas. Dei uns passos na rua. O caminho levou-me à liquor store. Ainda

estava aberta. Não levei a última noite a mal ao Southern Comfort, não sou rancoroso. Para que isso ficasse claro, comprei mais uma garrafa. O dono disse:

- Better than any ofyour Sambuco, hey ?

Não fiz nenhum comentário.

Desta feita, queria embebedar-me com preceito. Despi-me, pendurei o letreiro com o Do not disturb na porta, e o meu fato no cabide. A minha camisola interior, que

entretanto ficara enrodilhada, enfiei-a num saco de plástico apropriado, que também deixei no corredor. A isso juntei os meus sapatos e esperei que fosse encontrar

na manhã seguinte tudo aquilo em condições. Tranquei a porta por dentro, corri os cortinados, liguei o aparelho de televisão, enfiei-me no pijama, enchi o primeiro

copo, coloquei a garrafa e o cinzeiro à mão sobre a mesinha-de-cabeceira, pus ao seu lado os cigarros e a caixinha de fósforos, e a mim dentro da cama. Na televisão,

apareceu o lied River. Puxei a coberta até ao queixo, fiquei a ver, a fumar e a beber.

Após algum tempo, desapareceram as imagens da sala de audiências em que eu exercia, as das execuções a que eu tinha de assistir, dos uniformes verdes e cinzentos

e negros, e da minha mulher vestida de BDJVP. Deixei de ouvir o soar de botas nos compridos corredores, os discursos do Fúhrerna, rádio do povo, as sirenes. John

Wayne bebia whisky, eu bebia Southern Comfort e, quando ele agia e impunha a ordem, eu acompanhava-o.

No dia seguinte, o regresso da bebedeira já se havia tornado num ritual. Ao mesmo tempo, apercebi-me de que era tempo de parar de beber. Fui de carro até ao Golden

Gate Park e passeei durante duas horas. A noite, descobri o Perry's, um restaurante italiano onde me sentia quase tão bem como no Klei-nen Rosengarten. Dormi um

sono profundo e sem sonhos e, na segunda-feira, descobri o pequeno-almoço americano. Às nove, telefonei para casa de Vera Múller. Ela esperava-me para o almoço.

Ao meio-dia e meia encontrava-me diante de sua casa, em Telegraph Hill, com um ramo de rosas amarelas. Ela não era a caricatura de cabelos azuis que eu imaginara.

Era mais ou menos da minha idade, e se eu tivesse envelhecido como homem da mesma maneira que ela envelheceu como mulher, estaria muito satisfeito. Era alta, elegante,

ossuda, tinha os cabelos grisalhos presos, sobre os jeans trazia uma túnica tradicional russa, os óculos pendurados de uma correntezinha e uma expressão trocista

em torno dos olhos cinzentos e da boca fina. Tinha duas alianças na mão esquerda.

- Sim, sou viúva. - Tinha-se apercebido do meu olhar. - O meu marido morreu há três anos. O senhor recorda-mo.

Conduziu-me ao salão, através da janela via-se Alcatraz, a ilha da prisão.

- Quer um pastis como aperitivo? Sirva-se, vou meter a pizza no forno.

Quando voltou, eu tinha enchido dois copos.

- Tenho de lhe confessar uma coisa. Não sou um historiador de Hamburgo, mas um detective privado de Mannheim. O homem a cujo anúncio respondeu, também ele não era

nenhum historiador de Hamburgo, e foi assassinado, e eu estou a tentar descobrir porquê.

- Já sabe quem o matou?

- Sim e não.

Contei-lhe toda a minha história.

- Mencionou à senhora Hirscli o seu envolvimento pessoal no caso Tyberg?

- Não, não me atrevi.

- Lembra-me mesmo o meu marido. Era jornalista, um repórter famoso e muito empreendedor, mas que tinha medo em todas as reportagens. A propósito, é bom que não lhe

tenha dito nada. Ela ter-se-ia afligido muito, também por causa da relação dela com o Karl. Sabia que ele voltou a ter uma brilhante carreira em Stanford? A Sarah

nunca se adaptou a esse mundo. Ficou com ele porque pensava que lho devia, por ele ter esperado por ela durante tanto tempo. E, ao mesmo tempo, ele vivia com ela

apenas por lealdade. Nunca se casaram.

Conduziu-me ao balcão da cozinha e foi buscar a pizza.

- No envelhecer, agrada-me que os princípios adquiram falhas. Nunca teria imaginado poder estar sentada a comer com um antigo procurador do Ministério Público nazi,

sem que a pizza me ficasse entalada na garganta. Ainda é nazi?

A pizza ficou-me entalada na garganta.

- Pronto, pronto. Também não se parece com um nazi. Tem por vezes problemas com o seu passado?

- Pelo menos o suficiente para duas garrafas de Southern Comfort.

Contei-lhe como tinha aguentado o fim-de-semana.

Às seis horas ainda estávamos sentados juntos. Ela contou-me o seu começo na América. Tinha conhecido o marido nas Olimpíadas de Berlim e mudara-se com ele para

Los Angeles.

- Sabe o que me custou mais? Andar de fato de banho na sauna.

Depois, ela teve de ir para o seu turno da noite no Centro SOS Voz Amiga e eu voltei ao Perry e só levei para a cama uma embalagem com seis latas de cerveja. Na

manhã seguinte, ao pequeno-almoço, escrevi um postal a Vera, paguei a conta e fui de carro para o aeroporto. A noite estava em Pittsburgh. Completamente nevada.

4

Não há nada que preste no Sergej



Os táxis que me levaram à noite para o hotel, e na manhã seguinte para o ballet, eram tão amarelos como os de São Francisco. Eram nove horas, o ensembleyk ensaiava,

às dez faziam um intervalo, e eu fui perguntando até encontrar os meus dois mannheimerenses. Estes estavam em meias-calças e maio, encostados ao aquecimento com

um iogurte na mão.

Quando me apresentei e disse ao que vinha, quase não conseguiam acreditar que eu havia percorrido aquele longo caminho só por causa deles.

- Sabias que tinha acontecido isso ao Sergej? - A Hanne virou-se para o Joschka. - Bem, isso afecta-me muito.

Também o Joschka se tinha assustado.

- Se pudermos ajudar o Sergej de alguma maneira... Vou falar com o chefe. Na verdade, deve bastar que estejamos de volta às onze horas. Então, podemos sentar-nos

na cantina e falar.

A cantina estava vazia. Através da janela via-se um parque com grandes árvores despidas. As mães percorriam os caminhos com os filhos, esquimós dentro de sobretudos

acochados que brincavam em algazarra na neve.

- Bem, acho que é muito importante contar-lhe o que sei sobre o Sergej. Acharia horrível se partisse de algo errado... se pensasse que... o Sergej, ele é tão imensamente

sensível. Também é muito susceptível, não é assim tipo macho latino. Sabe, nem que seja só por isso, não pode ter sido ele a automutilar-se; ele sempre teve pavor

de feridas.

O Joschka já não tinha assim tanta certeza. Pensativamente, mexia um pauzinho de plástico no seu copinho sintético de café.

- Senhor Selb, eu também não acredito que o Sergej se tivesse automutilado. Não consigo simplesmente imaginar que alguém consiga fazer isso. Mas quando alguém...

Sabe uma coisa? O Sergej sempre teve ideias malucas.

- Como é que podes dizer uma coisa tão horrível? - interrompeu-o a Hanne. - Pensei que fosses amigo dele. Não, bem, isso deixa-me mesmo muito triste, a sério.

O Joschka pousou a mão no braço dela.

- Mas, Hanne, já não te lembras daquela noite em que recebemos o ensemble do Gana? Ele contou que, quando era escuteiro, se tinha cortado de propósito na mão quando

estava a descascar batatas, de modo a não ter de trabalhar mais na cozinha. Todos nos fartámos de rir disso, tu também.

- Mas tu percebeste tudo mal. Ele apenas fingiu que se tinha cortado, e atou a mão com uma grande ligadura. Bem, quando torces dessa maneira a verdade... Bem, Joschka,

realmente...

O Joschka não pareceu muito convencido, mas não queria discutir com a Hanne. Perguntei pela disposição e pelo estado de espírito do Sergej nos últimos meses da temporada

passada.


- Exactamente - disse Hanne -, isso também não bate certo com a sua estranha suspeita. Ele acreditava muito em si próprio, queria ainda aprender a dançar flamenco

e esforçou-.se para conseguir uma bolsa para Madrid.

- Mas, Hanne, ele não conseguiu essa bolsa.

- Mas não compreendes que o facto de ele se ter esforçado por a obter contém de uma maneira ou outra tanto poioer. E no Verão aquele namoro com o professor de germânicas

dele também deu, finalmente, certo. Sabe, o Sergej, não, ele não é maricas, mas também ama os homens. Acho isso óptimo nele. E depois nunca é assim uma coisa curta,

sexual, mas verdadeiramente profunda, a sério. Tem de se gostar dele. Ele é tão...

- Doce? - propus.

- Exactamente, doce. Conhece-o, senhor Selb?

- Bem, digam-me ainda: quem é o professor de germânicas que mencionou?

- Era mesmo de germânicas, ou era de direito? - O Jos-chka franziu a testa.

- Disparate, tu achas que não há nada que preste no Sergej. Era o de germânicas, um muito queridinho. Mas o nome... Nem sei se devo dizer-lho.

- Hanne, os dois não fizeram segredo nenhum disso, a julgar pela maneira como passeavam juntos pela cidade. É o Fritz Kirchenberg, de Heidelberg. Talvez seja bom

o senhor falar com ele.

Perguntei a opinião dos dois sobre as qualidades do Sergej como bailarino. A Hanne respondeu primeiro.

- Mas isso não tem nada a ver com este assunto. Mesmo quando não se é um bom bailarino, não tem de se cortar nenhuma perna. Recuso-me a falar sobre isso. E continuo

a achar que o senhor não tem razão.

- Ainda não tenho nenhuma opinião, senhora Fischer. E também quero deixar claro que o senhor Mencke não ficou sem perna, limitou-se a parti-la.

- Não sei se o senhor percebe alguma coisa de bailet, senhor Selb - disse Joschka. - Na realidade, aqui é como em todo o lado. Há as estrelas e aqueles que alguma

vez o irão ser; há uma boa média daqueles que já deixaram de ter ilusões mas que nunca precisarão de ter medos existenciais. E depois há ainda aqueles que têm de

viver num medo constante pelo contrato seguinte, aqueles para quem seguramente tudo acaba quando envelhecem. O Sergej pertence ao terceiro grupo.

A Hanne não o contradisse. Pelo seu ar teimoso, deu a perceber que achava que aquela conversa não tinha nada a ver com o assunto.

- Pensei que o senhor queria saber algo sobre o Sergej como pessoa. Os homens também não querem saber de mais nada senão da carreira.

- Como é que o senhor Mencke imaginava o futuro dele?

- Paralelamente, fazia dança de salão e disse-me uma vez que gostaria de abrir uma escola de dança, uma escola muito tradicional, para jovens de quinze e dezasseis

anos.

- Isso também demonstra logo que ele não pode ter auto-infligido qualquer mutilação. Pensa lá um pouco, Joschka. Como é que ele pode ser professor de dança sem uma



perna?

- Também sabia dos planos dele de ser professor de dança, senhora Fischer?

- O Sergej estava sempre a fazer montes de planos. É muito criativo e tem uma grande fantasia. Também poderia imaginar-se a fazer coisas completamente diferentes,

a criar ovelhas na Província ou coisa assim.

Eles tinham de voltar ao ensaio. Deram-me os números de telefone, caso eu ainda tivesse perguntas, perguntaram-me se tinha alguns planos para a noite e prometeram

deixar-me um bilhete gratuito no guiché. Fiquei a olhá-los. O andar do Joschka era concentrado e elástico; a Hanne caminhava com uns passos leves e flutuantes. Ela

dissera muitas parvoíces, a sério, mas andava de uma maneira convincente e eu teria gostado de a ver à noite no ballet. Mas Pittsburgh era demasiado frio. Mandei

que me levassem ao aeroporto, voei para Nova Iorque e consegui obter, ainda para a mesma noite, o regresso a Frankfurt. Acho que sou demasiado velho para a América.

5

O que é que ele anda a cozinhar!



Fiz o programa para o resto da semana no Café Grneiner, ao brunch. Lá fora caíam densos flocos de neve. Tinha de descobrir o chefe dos escuteiros a cujo grupo o

Mencke pertencera, e falar com o professor Kirchenberg. E queria ainda ter uma conversa com o juiz que naquele tempo condenara à morte o Tyberg e o Dohmke. Tinha

de saber se a condenação resultara de uma indicação vinda de cima.

Depois da guerra, o juiz Beufer tornara-se presidente dos senadores no Oberlandsgericht de Karlsruhe; encontrei o seu nome na lista telefónica da estação central

dos correios de Karlsruhe. A sua voz era surpreendentemente jovem, e ele recordava-se do meu nome.

- O Selb! - exclamou. - O que é feito dele?

Estava disposto a receber-me à tarde para conversarmos.

Morava em Durlach, numa casa na encosta com vista sobre Karlsruhe. Vi o enorme gasómetro que nos saúda com a inscrição Karlsruhe. Foi o próprio juiz Beufer que me

abriu a porta. Perfilava-se direito como um militar, vestia um fato cinzento, debaixo deste uma camisa branca com gravata vermelha e alfinete prateado. O colarinho

tornara-se demasiado largo para o pescoço velho e enrugado. O Beufer era careca, o seu rosto pendia pesadamente: sacos lacrimais, bochechas, queixo. No Ministério

Público, tínhamos sempre troçado das suas orelhas destacadas. Estas estavam mais impressionantes do que nunca. Parecia estar doente. Devia ter oitenta e muitos anos.

- Com que então, ele tornou-se detective privado. E não se envergonha? Ele era um bom jurista, um advogado incisivo. Eu sempre esperei voltar a vê-lo entre nós quando

o pior passou.

Estávamos sentados no seu escritório e bebíamos xerez. Ele ainda lia a Neue Júristische Wochenschrift.

- O Selb não veio aqui apenas para visitar o seu velho juiz - os seus olhinhos de porco brilhavam com ar traquinas. :- Recorda-se do processo-crime contra o Tyberg

e o Dohmke? Nos finais de 1943, inícios de 1944? Naquele tempo, eu conduzi a instrução criminal, o Sòdelknecht representou a acusação, e o senhor presidiu ao Tribunal.

- O Tyberg e o Dohmke...

Repetiu algumas vezes os nomes em voz alta.

- Sim, foram condenados à morte e, no caso do Dohmke, ele chegou a ser executado. O Tyberg subtraiu-se à execução. Chegou bem longe, o homem. E era um homem do mundo...

era... ou ainda está vivo? Encontrei-o uma vez numa recepção na Solitude, gracejámos sobre os velhos tempos. Ele entendeu que naquele tempo todos tínhamos de cumprir

o nosso dever.

- O que eu queria saber é o seguinte: naquele tempo, o Tribunal recebeu algum sinal vindo de cima em relação ao resultado do processo, ou foi um processo absolutamente

normal?

- Por que é que está interessado nisso? O que é que ele anda a cozinhar, o Selb?



A pergunta tinha de ser feita. Falei-lhe de um contacto acidental com a senhora Múller e do meu encontro com a senhora Hirsch.

- Quero apenas saber o que aconteceu naquele tempo e que papel é que eu desempenhei.

- O que a mulher lhe contou nunca serviria para uma reabertura do processo. Se o Weinsteín ainda fosse vivo... Mas assim... Também não acredito nisso. Cada qual

tem a sua opinião e, quanto melhor me recordo, mais certo estou de que a sentença foi a correcta.

- E houve sinais vindos de cima? Não me compreenda mal, senhor Beufer. Ambos sabemos que os juízes alemães souberam manter a sua independência, mesmo em condições

extraordinárias. Apesar disso, havia sempre tentativas para exercer alguma influência pela parte interessada, e eu gostaria muito de saber se neste caso havia alguma

parte interessada.

- Ora, por que é que ele não deixa as coisas do passado em paz, o Selb? Mas, se ele tem de o saber, é para sossego da sua alma... O Weismúller telefonou-me algumas

vezes, era o director-geral naquele tempo. Era importante para ele que o caso saísse de cima das nossas mesas e que as IQR deixassem de ser faladas. Talvez por essa

razão lhe tivesse calhado bem a condenação do Tyberg e do Dohmke. Nada faz sair um caso tão rapidamente das nossas mesas como uma execução rápida. Se o Weismúller

ainda tinha outras razões para querer a execução... Não faço ideia, mas não acredito.

- E isso foi tudo?

- O Weismúller ainda teve de falar com o Sòdelknecht. O advogado de defesa do Tyberg tinha apresentado como testemunha abonatória alguém das IQR, que arriscou o

pescoço da maneira como falou, e por quem o Weismúller se empenhou. Espere, esse homem também foi longe, claro, o nome dele é Korten, o actual director-geral. Agora

temos os directores-gerais todos juntos! - riu-se.

Como é que eu pudera esquecer aquilo? Naquele tempo, eu ficara satisfeito por não ter de envolver o meu amigo e cunhado no processo, mas depois a defesa fora buscá-lo.

Fiquei contente porque, como o Korten trabalhava em estreita colaboração com o Tyberg, a sua participação no processo poderia ter lançado também suspeitas sobre

ele ou, pelo menos, poderia ter-lhe prejudicado a carreira.

- Naquele tempo, sabia-se no Tribunal que o Korten e eu éramos cunhados?

- Por Deus! Eu nunca chegaria lá. Então aconselhou bastante mal o seu cunhado. Ele empenhou-se tanto pelo Tyberg que o Sòdelknecht quase o mandou prender ali mesmo,

durante o processo. Muito decente, demasiado decente, não serviu de nada ao Tyberg. Deixa um certo sabor acre na boca, quando uma testemunha da defesa não sabe dizer

nada em relação ao acto em si e apenas debita lugares-comuns amáveis sobre o acusado.

Não havia mais nada que eu tivesse ainda de perguntar ao Beufer. Bebi um segundo xerez, que ele me serviu, e conversei sobre colegas que ambos conhecíamos. Depois,

despedi-me.

- Este Selb! Agora vai outra vez atrás do seu faro... Mas ela não o deixa em paz, a Justiça, não é verdade? Volta a aparecer em casa do velho Beufer? Dar-me-ia muito

gosto.


Havia dez centímetros de neve acabada de cair sobre o meu automóvel. Limpei-a, consegui descer, com muita sorte, a colina até à estrada nacional e segui pela auto-estrada

atrás de um limpa-neve, em direcção ao Norte. Escurecera. O rádio do carro falava de filas de trânsito e tocava êxitos dos anos sessenta.

6

Batatas, couve branca e morcela picante



Por causa da neve espessa, falhei o desvio para Marinheiro no cruzamento de Walldorf. Depois, o limpa-neves entrou num parque de estacionamento e eu estava perdido.

Ainda consegui chegar à área de serviço de Hardtwald.

No pronto-a-comer, esperei em pé, ao lado do meu café, que a neve parasse. Observei os flocos dançando. De repente, as imagens do meu passado tornaram-se muito vivas.

Tinha sido numa noite de Agosto ou Setembro de 1943. A Klara e eu tivemos de sair da nossa casa na Rua Werder e acabávamos de terminar as mudanças para a Rua Bahnhof.

O Kor-ten estava a jantar connosco. Havia batatas, couve branca e morcela picante. O Korten estava encantado com a nova casa, elogiou a Klara pelo jantar, e eu irritei-me


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