Neblina Sobre Mannheim Bernhard Schlink e Walter Popp



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a voz tinha algo de choramingas, talvez apenas por causa dos últimos meses.

- Não teria sido melhor vir ter primeiro comigo, do que ir irritar todo o meu território social circundante?

Então, era assim que ele era. Um quezilento.

- E o que é que me teria então contado?

- Que a sua suspeita não tem fundamento nenhum, fruto diabólico de cérebros doentes. Consegue imaginar-se a estropiar a própria perna desta maneira?

- Ora, senhor Mencke - puxei uma cadeira para perto da sua cama -, há tantas coisas que eu nunca faria. Também nunca me cortaria no polegar para não ter de lavar

mais a loiça. E também não faço ideia do que faria para receber um milhão, se fosse um bailarino sem futuro.

- Essa história parva do acampamento dos escuteiros. Como é que soube dela?

- Irritando o seu território social circundante. O que é que se passou com o seu polegar?

- Foi um acidente absolutamente normal. Estava a amanhar arenques com o canivete. Sim, já sei o que está a pensar. Que eu já contei uma história diferente, mas isso

foi apenas porque era uma história gira, e a minha juventude não é assim tão cheia de histórias. E quanto ao meu futuro como bailarino... ouça lá, o senhor também

não me impressiona como ainda tendo um grande futuro diante de si, mas essa razão com certeza não será motivo bastante para quebrar um membro qualquer.

- Diga-me, senhor Mencke, como é que pretende financiar a escola de dança de que tanto tem falado?

- O Frederik queria apoiar-me, o Fritz Kirchenberg, quero eu dizer. Ele tem montes de dinheiro. Se eu quisesse intrujar a seguradora, teria pensado em algo muito

mais esperto.

- A história da porta do carro não é assim tão estúpida. Mas o que é que teria sido muito mais esperto?

- Não me apetece falar nisso consigo. E eu só disse: se eu quisesse intrujar a seguradora.

- Está disposto a sujeitar-se a um exame psiquiátrico? Isso facilitaria muito a decisão da seguradora.

- Nem pensar nisso. Ainda me faziam passar por louco. Se não me pagarem imediatamente, vou falar com um advogado.

- Durante o processo, não poderá escapar-se ao exame psiquiátrico.

- Isso é o que iremos ver.

A enfermeira entrou e trouxe um pires com comprimidos coloridos.

- Os dois vermelhos para agora, o amarelo antes e o azul depois da refeição. Como é que nos sentimos hoje?

O Sergej tinha lágrimas nos olhos quando olhou para a enfermeira.

- Já não aguento mais, Katrin. Sempre estas dores e nunca mais poder dançar. E agora este senhor da companhia de seguros a acusar-me de ser um intrujão.

Katrin, a enfermeira, pôs-lhe a mão na testa e olhou-me com ar zangado.

- Não vê como o Sergej está a sofrer? Não tem vergonha? Deixe-o em paz. É sempre o mesmo, com as companhias de seguros; primeiro tiram-nos o dinheiro dos bolsos,

depois torturam-nos porque não querem pagar.

Eu já não conseguia aproveitar mais nada desta conversa e fugi. A refeição, anotei alguns pontos fulcrais para o meu relatório para as Seguradoras Unidas de Heidelberg.

A minha conclusão era que não se tratava nem de uma automutilação premeditada nem de um simples azar. Só podia resumir os pontos de vista a favor de cada uma das

hipóteses. Se a companhia de seguros não lhe quisesse pagar, ficaria bem defendida com base naquele relatório.

Quando atravessei a rua, um carro salpicou-me dos pés à cabeça com neve lamacenta. Eu já estava mal-disposto quando fui para o escritório, e trabalhar no relatório

ainda me dispôs pior. A noite, acabei de ditar penosamente duas cassetes que levei à Rua Tattersall para serem passadas. No caminho de regresso, lembrei-me de que

ainda queria perguntar à senhora Mencke sobre os métodos de extracção de dentes do pequeno Siegfried. Mas agora isso era-me completamente indiferente.

14

Mateus 6, versículo 26



Foi uma pequena assembleia enlutada, a que se reuniu na sexta-feira, às 14 horas, no cemitério principal de Lud-wigshafen. O Eberhard, o Philipp, o representante

do decano da Faculdade de Ciências de Heidelberg, a mulher-a-dias do Willy e eu. O representante do decano preparara um discurso que leu contra-vontade por causa

da reduzida audiência. Ficámos a saber que o Willy era uma autoridade reconhecida internacionalmente no âmbito dos estudos das corujas. E fazia isso apaixonadamente:

durante a guerra, então assistente na Universidade de Hamburgo, salvara uma família de corujas, profundamente transtornada, de uma gaiola a arder no Jardim Zoológico

de Hagenbeck. O padre comentou Mateus 6, versículo 26, sobre as aves do céu. Sob um céu azul e uma neve ran-gente, avançámos da capela para a sepultura. O Philipp

e eu éramos os primeiros, logo depois do caixão. Ele sussurou:

- Tenho de te mostrar uma fotografia. Encontrei-a durante as arrumações. O Willy e as corujas salvas com, respectivamente, cabelos e penas chamuscadas, seis pares

de olhos fitam a máquina fotográfica, esgotados mas felizes. Fiquei muito comovido.

Depois, rodeámos a cova funda. É como uma lengalenga. Pela ordem de idades, o Eberhard é o próximo e depois sou eu. Quando morre alguém de quem gosto, já não penso:

"Ah, eu devia ter feito isto e dito aquilo...". E quando morre alguém da minha idade, é como se me tivesse precedido, embora não saiba para onde. O padre rezava

o Pai Nosso, e todos nós o acompanhámos; até o Philipp, que conheço bem como implacável ateu, o disse connosco em voz alta. Depois, cada um de nós deitou a sua pazinha

de terra na cova, e o padre cumprimentou-nos a todos com um aperto de mão. Era um jovem, mas convicto e convincente. O Philipp tinha de voltar para o serviço logo

a seguir.

- Vocês vêm esta noite a minha casa, comer qualquer coisa?

No dia anterior comprara na cidade mais doze latas de sardinha pequenas para a árvore de Natal e pusera os peixinhos em molho de escabeche. A acompanhar, haveria

pão de trigo e Rioja. Combinámos encontrar-nos às oito horas.

O Philipp partiu a correr, o Eberhard fez as honras ao representante do decano, e a mulher-a-dias, que continuava a soluçar comovedoramente, foi suavemente conduzida

pelo braço do padre. Eu tinha tempo e passeei lentamente pelas ruas do cemitério. Se a Klara estivesse ali, tê-la-ia visitado e conversado um pouco com ela.

- Senhor Selb!

Voltei-me e reconheci a senhora Schmalz, com um pequeno sacho e um regador.

- Vou agora mesmo ao jazigo da família, onde agora descansa também a urna do Heinrich. Ficou bonito, o jazigo. Quer vir vê-lo?

Olhou para mim timidamente, com a sua cara estreita e acabrunhada. Tudo o que vestia era fora de moda: um sobretudo negro, botas pretas abotoadas, um barrete de

pele preto sobre o cabelo grisalho apanhado num totó, e uma malinha de mão em pele digna de misericórdia. Na minha geração há figuras femininas que, quando as vejo,

me fazem acreditar em tudo o que as profetisas dos movimentos feministas escrevem, embora nunca as tenha lido.

- Ainda vive na parte antiga da fábrica? - perguntei-lhe durante o caminho.

- Não, tive de sair, demoliram tudo. A fábrica alojou-me na Pfingstweide. A casa é boa, muito moderna, mas, sabe, é duro, depois de tantos anos. Demoro uma hora

a chegar ao túmulo do meu Heinrich. Depois, graças a Deus, o meu filho vem buscar-me de carro.

Estávamos diante do jazigo. Estava completamente coberto de neve. O laço da coroa enviada pela fábrica, e há muito decomposta, estava preso a um pauzinho e saltava

à vista: parecia um estandarte ao lado da pedra tumular. A viúva Schmalz pousou o regador e baixou o sacho.

- Hoje já não vou poder fazer nada, com toda esta neve.

Estávamos ali de pé e ambos pensávamos no velho Schmalz.

- Também já quase não vejo o pequeno Richard. Agora, vivo demasiado longe. O que é que o senhor acha, é justo que a fábrica... Oh, meu Deus, desde que o Heinrich

já não está comigo penso sempre em certas coisas. Ele nunca mo permitiu, nunca deixou que dissesse nada que prejudicasse as IQR.

- Quando é que soube que tinha de se mudar dali?

- Hájá meio ano. Escreveram-nos. Mas depois tudo se passou muito depressa.

- O Korten não foi de propósito falar com o seu marido, quatro semanas antes da mudança, de modo a que não lhe custasse tanto?

- Falou? Ele nunca me disse nada sobre isso. Tinha uma relação estreita com o director. Do tempo da guerra, quando as SS o destacaram para a fábrica. É verdade o

que eles disseram no seu enterro: desde então, a fábrica era a sua vida. Não ganhou muito com isso, mas nem isso eu podia dizer. Oficial das SS ou oficial-chefe

da segurança, a luta continuava, era o seu lema.

- O que é que aconteceu à oficina dele?

- Construiu-a com tanto amor... E também gostava muito dos carros. Tudo isso desapareceu muito rapidamente nas demolições, o meu filho mal teve tempo de lá ir buscar

alguma coisa, penso que transformaram tudo em sucata. Também não achei isso bem. Oh, Deus - mordeu os lábios e fez uma expressão como que se estivesse a cometer

algum sacrilégio. - Desculpe-me, não queria falar mal das IQR.

Agarrou o meu braço apaziguadoramente. Ficou durante algum tempo agarrada a ele e olhou para o túmulo. Pensativamente, continuou:

- Mas talvez, no fim, o Heinrich também não achasse que a fábrica nos estava a tratar como devia ser. No leito de morte, ainda quis dizer alguma coisa da garagem

e dos carros ao director. Eu já não consegui entendê-lo.

- Permite que um velho lhe faça uma pergunta, senhora Schmalz? Tinha um casamento feliz com o Heinrich?

Ela agarrou no regador e no sacho.

- É o que se pergunta hoje. Nunca pensei nisso. Ele era o meu marido.

Dirigimo-nos para o parque de estacionamento. O jovem Schmalz acabara de chegar. Ficou contente por me ver.

- O doutor! Encontrou a mãe no túmulo do papá.

Contei-lhe do enterro do meu amigo.

- As minhas condolências. Dói muito, a perda de um amigo. Também já me aconteceu. Continuo muito agradecido por ter protegido o pequeno Richard. E, um dia qualquer,

tem de vir beber o tal café comigo e com a minha mulher. A mãe pode também vir. Que bolo prefere?

- O meu preferido é o Zwetschgenstreusel.

Não disse aquilo por maldade. É mesmo o meu bolo preferido.

O Schmalz respondeu principescamente.

- Oh, bolo de ameixas com torrõezinhos de farinha e manteiga. A minha mulher sabe fazê-lo como ninguém. Talvez um cafezinho, entre o Natal e o Ano Novo, quando já

está tudo mais calmo?

Aceitei. Para acertarmos uma data, voltaríamos a telefonar-nos.

A noite com o Philipp e o Eberhard foi de uma alegria dolorosa. Recordámos a nossa última noite de jogo de Doppelkopf com o Willy. Tínhamos então gracejado sobre

o que iria acontecer aos nossos jogos quando um de nós morresse.

- Não - disse o Eberhard -, não vamos procurar mais nenhum jogador. A partir de agora jogamos Seat.

- E depois, xadrez, e o último encontra-se duas vezes por ano a fazer paciências - disse o Philipp.

- Bem te podes rir, és o mais novo.

- Rir-me de quê? Fazer paciências? Prefiro morrer, profilacticamente!

15

And the race is on



Desde que me mudei de Berlim para Heidelberg, compro a árvore de Natal no Handschuhsheim, em Tief-burg. Há muito tempo que elas já não são diferentes das outras.

Mas gosto da pequena praça diante do castelo em ruínas. Antigamente, o eléctrico andava em seu redor sobre calhas, a chiar; a linha acabava aqui, e a Klarinha e

eu costumávamos passear, no Verão, desde aqui até ao Monte Santo. Hoje em dia, o Handschuhsheim tornou-se local da moda e, no mercado semanal, encontram-se todos

aqueles que acham ter algum valor cultural e intelectual em Heidelberg. Virá o dia em que apenas os aglomerados urbanos do tipo do Màrkischen Viertels serão autênticos.

Gosto especialmente de abetos. Mas, para as minhas latas de sardinhas, pareceu-me mais apropriada a árvore chamada pseudotsuga. Encontrei uma árvore bonita, direita,

espessa, da altura da parede. Cabia mesmo ajusta no meu Kadett, sobre as costas rebatidas do banco da frente e os lugares traseiros rebaixados, na diagonal. Estacionei

no parque perto da Câmara Municipal. Fizera uma pequena lista de compras de Natal. Na rua principal, andava o diabo à solta. Abri caminho até ao joalheiro Welsch

e comprei uns brincos para a Babs. Nunca se proporciona, mas gostaria de, um dia, ir beber uma cerveja com o Welsch. Ele tem o mesmo gosto que eu. Para a Rõschen

e o Georg escolhi, das sugestões de uma dessas boutiques de presentes impertinentes, dois relógios descartáveis, que são considerados modernos pela actual juventude

pós-moderna, de plástico transparente com mecanismo e mostrador integrados. Fiquei esgotado. No Café Schafheutle encontrei o Thomas com a mulher e três filhas pubescentes.

- Um agente de segurança da fábrica não tem de ofertar filhos à fábrica?

- No campo da segurança, há cada vez mais trabalhos fascinantes para mulheres. Para o nosso curso, estamos a contar com trinta por cento de participantes femininas.

A propósito, o Ministério da Cultura apoia-nos como projecto-piloto, e por essa razão a Universidade Técnica decidiu introduzir uma especialização própria em segurança

interna. Posso apresen-tar-me hoje ao senhor como decano já nomeado. No dia 1 de Janeiro saio das IQR.

Dei os parabéns ao próspero senhor pelo cargo, honra, dignidade e título.

- O que é que o Danckelmann irá fazer sem o senhor?

- Vai ser difícil para ele nos próximos anos, até se reformar. Mas eu quero que a especialização também seja activa em termos de peritagem e, depois, ele poderá

comprar-nos conselhos. Está a trabalhar no currículo do curso que ficou de me enviar, senhor Selb?

Aparentemente, o Thomas já se emancipara das IQR e assumia o novo papel. Convidou-me a sentar à sua mesa, onde as filhas davam risadinhas e a mulher piscava os olhos

nervosa mente. Olhei para o relógio, desculpei-me e apressei-me para a ir ao Café Scheu.

Depois disso, fiz uma segunda tentativa de continuar a riscar coisas da minha lista. O que é que se dá como prenda a um homem viril de cinquenta e muitos anos? Um

conjunto de cuecas figuradas? Geleia real? As histórias eróticas de Anais Nin? Por fim, comprei um picador de gelo para o bar do barco.

Depois, a minha aversão às lojas e aos tinidos natalícios tornou-se demasiado grande. Sentia uma profunda insatisfação com a Humanidade e comigo mesmo. Necessitaria

de muitas horas em casa para voltar outra vez a mim. Por que é que me tinha precipitado no movimento natalício? Por que é que cometia todos os anos o mesmo erro?

Não teria aprendido nada em relação a isso, ao longo da minha vida? Para quê aquilo tudo? O Kadett cheirava agradavelmente a floresta de abetos.

Quando consegui vencer o trânsito até à auto-estrada, respirei fundo. Pus uma cassete a tocar; tirei uma mesmo do fundo da pilha, porque ouvira as outras demasiadas

vezes na viagem para Locarno. Mas não saiu música nenhuma: ouvi levantarem o auscultador de um telefone, o sinal de marcar, marcaram um número, e tocou no destinatário.

Ele atendeu. Era o Korten.

- Bom dia, senhor Korten. Aqui fala o Mischkey. Aviso-o. Se os seus homens não me deixarem em paz, atiro-lhe à cara o seu passado. Não vou deixar que continuem a

pressionar-me, e muito menos que me espanquem novamente.

- Pensei que era mais inteligente, segundo o relatório do Selb. Depois da violação do nosso sistema informático, agora ainda uma tentativa de chantagem. Não tenho

nada para lhe dizer.

Na realidade, o Korten deveria ter desligado nesse mesmo segundo. Mas o segundo passou, e o Mischkey continuou a falar.

- Já passaram os tempos, senhor Korten, em que era apenas necessário um contacto nas SS e um uniforme das SS para empurrar as pessoas para onde se quisesse, para

a Suíça ou para o cadafalso.

O Mischkey desligou. Ouvi-o respirar fundo, depois o barulho do desligar do gravador. A música come-on. "And the race is on and it looks like heartache and the winner

loses ail."

Desliguei o leitor de cassetes e parei na berma. A cassete do cabriolet do Mischkey! Tinha-me esquecido completamente dela.

16

Tudo pela carreira ?



Nessa noite, não consegui dormir. Às seis horas desisti e pus-me a montar e a enfeitar a árvore de Natal. Ouvira e tornara a ouvir a cassete do Mischkey. No sábado

não estava ainda em estado de pensar e ordenar todas as informações.

Pus dentro de água as trinta latas de sardinhas vazias que juntara. Não podiam cheirar a peixe quando estivessem penduradas na árvore de Natal. Fiquei a olhá-las,

com os cotovelos apoiados na beira do lava-louças, vendo-as descer para o fundo. Algumas tinham a tampa arrancada desde quando as abrira. Iria colá-las.

Tinha então sido o Korten quem mandara encontrar e denunciar os documentos na secretária do Tyberg? Devia tê-lo notado quando o Tyberg contou que apenas ele, o Dohmke

e o Korten sabiam do esconderijo. Não, o Weinstein não fizera nenhuma descoberta casual, como o Tyberg pensara. Tinham-lhe ordenado que encontrasse os documentos

na secretária. Era o que a senhora Hirsch havia dito. Talvez o Weinstein até nunca tivesse visto os documentos; o que interessava era o seu testemunho, e não o achado.

Quando começou a clarear lá fora, fui para a varanda e adaptei a árvore de Natal ao suporte, Tive de utilizar o machado c serrar. A extremidade era demasiado comprida;

serrei-a de maneira a podei recolocá-la na árvore com uma agulha.

Depois, coloquei a árvore no seu lugar, na sala.

Porquê? Tudo pela carreira? Sim, o Korten nunca poderia ter ido tão longe se o Tyberg e o Dohmke tivessem ficado. O Tyberg falara dos anos depois do processo como

a pedra-base da sua ascensão. E a libertação do Tyberg tinha sido o resseguro. Este foi totalmente reembolsado. Quando o Tyberg se tornou director-geral das IQR,

catapultou o Korten para alturas nunca antes vistas.

Uma trama em que eu tivera o papel do idiota útil. Concebido e orquestrado pelo meu amigo e cunhado. Por quem eu ainda tinha ficado contente por não ter de envolver

no processo. Servira-se de mim de uma forma magistral. Pensei na nossa conversa quando mudámos para a Rua Bahnhof. Pensei também nas últimas conversas que tivéramos,

no Salão Azul e no terraço da sua casa. Eu, o coraçãozinho de manteiga.

Os meus cigarros tinham acabado. Há anos que isso não me acontecia. Vesti o paletó e calcei as galochas, meti no bolso o São Cristóvão que tirara do carro do Mischkey

e de que também me lembrara no dia anterior, e fui a casa da Judith. Entretanto, a manhã já ia avançada. Ela veio à porta em roupão.

- O que é que se passa contigo, Gerd? - Olhou-me com um ar assustado. - Sobe, acabei agora mesmo de fazer café.

- Estou assim com tão mau aspecto? Não, não vou subir, estou a enfeitar a minha árvore de Natal. Queria trazer-te o São Cristóvão. Não tenho de te dizer de onde

ele veio... tinha-o esquecido completamente e agora voltei a encontrá-lo.

Ela agarrou no São Cristóvão e encostou-se à ombreira da porta. Lutava contra as lágrimas.

- Diz-me ainda uma coisa, Judith, lembras-te se o Peter fez alguma viagem de dois ou três dias entre o episódio do cemitério e a sua morte?

- O quê?


Não me tinha ouvido, e eu repeti a pergunta.

- Viagem? Sim, como é que sabes?

- Sabes para onde?

- Para o Sul, disse ele. Para voltar a si, porque estava farto de tudo. Por que perguntas?

- Estou a pensar se ele não foi ter com o Tyberg, no papel do repórter do jornal Die Ze.it.

- Queres dizer procurando material que pudesse utilizar contra as IQR? - Ela reflectiu. - Bem capaz disso era ele. Mas não havia nada a descobrir, da maneira como

o Tyberg descreveu a visita.

Apertou mais o roupão, cheia de frio.

- Não queres mesmo um café?

- Volto a dar notícias, Judith.

Fui para casa.

Tudo batia certo. Um Mischkey desesperado tentara usar contra o Korten o hino da decência e da resistência que o Tyberg cantara. Intuitivamente, distinguira, melhor

do que todos nós, as dissonâncias: a ligação às SS, o salvamento do Tyberg mas não do Dohmke. Ele não se apercebeu de quão próximo estivera da verdade e do quão

ameaçador deve ter soado aos ouvidos do Korten. Não deve apenas ter soado - aquelas investigações obstinadas eram uma verdadeira ameaça.

Por que é que eu não me apercebera disso? Se o Tyberg era assim tão fácil de salvar, por que é que o Korten não fora libertar os dois, dois dias antes, quando o

Dohmke ainda estava vivo? Como seguro bastava um, e o Tyberg, o chefe do grupo de investigação, era mais interessante do que o colaborador Dohmke.

Tirei as galochas dos pés e bati-as uma contra a outra até a neve cair toda. Nas escadas, cheirava a Sauerbraten. Na véspera não comprara comida nenhuma e só pude

estrelar dois ovos. Bati o ovo que sobrava para o Turbo e deitei-o por cima da sua comida. Ele sofrera muito nos últimos dias com a casa impregnada do cheiro a sardinhas.

O homem das SS que ajudara o Korten na libertação do Tyberg tinha sido o Schmalz. Juntamente com o Schmalz, o Korten pressionara o Weinstein. Fora para o Korten

que o Schmalz assassinara o Mischkey.

Passei as latas de sardinhas por água limpa e quente, e sequei-as. Colei as tampas às que as não tinham. Passei o fio de lã verde, com que queria pendurá-las, umas

vezes pela espiral da tampa aberta, outras pelo aro da tampa, outras pelo ponto em que a tampa aberta se unia à lata. Logo que tinha uma lata pronta, procurava o

lugar apropriado para ela na árvore de Natal; as maiores mais para baixo, as pequenas mais para cima.

Mas não conseguia iludir-me. Estava-me nas tintas para a árvore de Natal. Por que é que o Korten deixara sobreviver o Weinstein, que sabia tudo? O Korten, possivelmente,

não tinha nenhuns conhecimentos dentro das SS; cativara e dominara apenas o Schmalz, o oficial das SS na fábrica. Não podia ter a certeza, mas partiu do princípio

de que o Weinstein, de volta ao campo de concentração, seria morto. E depois da guerra? Mesmo que o Korten viesse a saber que o Weinstein sobrevivera ao campo de

concentração, podia partir do princípio de que uma pessoa que tivesse feito o que o Weinstein tivera de fazer preferiria não abrir a boca.

Agora, também faziam sentido as últimas palavras que a viúva dissera ter ouvido ao marido no leito de morte. O Schmalz deve ter tentado avisar o seu mestre e senhor

da pista que não conseguira destruir devido ao seu estado físico. Como o Korten conseguira tornar aquele homem tão dependente de si! O jovem académico de boas famílias

e o oficial das SS de origens modestas, os grandes desafios e missões, dois homens ao serviço da fábrica, mas cada um no seu lugar. Conseguia imaginar o que se tinha

passado entre os dois. Ninguém sabia melhor do que eu quão convincente e sedutor o Korten podia ser.

A árvore de Natal estava pronta. Trinta latas de sardinhas penduradas, trinta velas brancas acesas. Uma das latas de sardinhas, pendurada verticalmente, era oval

e recordou-me o halo de luz de algumas pinturas de Nossa Senhora. Fui à cave, encontrei a caixa de cartão com os enfeites da árvore de Natal da Klarinha e, lá dentro,

uma pequena e esbelta Madonna com manto azul. Cabia dentro da lata.

17

Já sabia o que tinha de fazer



Também não consegui dormir nas noites seguintes. Por vezes adormecia durante um bocadinho e sonhava com a execução do Dohmke e a intervenção do Korten no processo,


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