Neblina Sobre Mannheim Bernhard Schlink e Walter Popp



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a pequena capela no meio.

- Agora, conta-me, com todos os pormenores, como é que convenceste o Tyberg - pedi à Judith enquanto comíamos o Birchermúsli que aqui é feito de uma maneira especialmente

deliciosa, com muitas natas e sem excesso de flocos de aveia.

- Quando fui destacada para as comemorações das IQR, ele convidou-me, caso passasse por Locarno, a ir a casa dele. Peguei-lhe então na palavra, e disse-lhe que tinha

de fazer de motorista ao meu idoso tio - apaziguadoramente, colocou a sua mão sobre a minha -, que queria procurar no lago Mag-gíore uma casa para passar a velhice.

Acrescentei que ele conhecia este meu tio idoso do tempo da guerra. Convidou-nos logo para tomar chá amanhã.

AJudith estava orgulhosa da sua diplomática jogada de xadrez. Eu tinha as minhas dúvidas.

- O Tyberg não irá pôr-me imediatamente fora de casa, quando reconhecer em mim o desagradável procurador nacional-socialista? Não teria sido melhor contar-lhe tudo

sem mais rodeios?

- Também pensei nisso, mas nesse caso talvez ele não deixasse sequer o desagradável procurador nacional-socialista entrar em casa.

- E por que razão um tio idoso e não um amigo mais velho?

- Isso soa a amante. Penso que agrado ao Tyberg como mulher, e talvez ele não me convidasse se me soubesse arrumada e, ainda por cima, acompanhada pelo dito cujo.

És um detective privado muito susceptível.

- Sim. Estou pronto a assumir a responsabilidade de ter sido o procurador no caso do Tyberg. Mas então deverei confessar logo a seguir que sou teu amante e não teu

tio?

- Isso é uma pergunta para mim?



Ela disse isto rápida e impertinentemente, mas ao mesmo tempo foi buscar o tricô, como se quisesse preparar-se para uma longa discussão.

Eu acendi um cigarro.

- Sempre me interessaste, também como mulher, e agora pergunto-me se para ti eu represento apenas um velhote decrépito, com ar de tio e desassexuado.

- O que é que queres agora? "Sempre me interessaste, também como mulher." Interessaste-te por mim no passado, então deixa. Estás interessado no presente, então assume-o.

Preferes sempre assumir a responsabilidade pelo passado do que pelo presente.

Duas direitas, duas esquerdas.

- Não tenho problema nenhum em assumir que me interesso por ti, Judith.

- Sabes, Gerd, claro que te vejo como homem, e também gosto de ti como tal. Mas isso nunca foi tão forte a ponto de fazer com que eu quisesse dar o primeiro passo.

Muito menos Nas últimas semanas. Mas que primeiros passos tão torturados são esses que dás? Ou não são sequer primeiros passos? "Não tenho problema nenhum em assumir

isso", e contudo tens as maiores dificuldades em sequer pronunciar essa frase cuidadosa e tortuosa. Vá, vamos andando.

Ela enrolou em torno das agulhas de tricô a manga da camisola começada e ainda mais um pouco de fio.

Não me lembrava de mais nada. Sentia-me humilhado. Até Olten, não dissemos uma palavra.

A Judith encontrara no rádio o concerto para violoncelo de Dvorak e tricotava.

O que é que me teria verdadeiramente humilhado? A Judith só me tinha atirado à cara aquilo que eu próprio sentira nos últimos meses: a falta de clareza dos meus

sentimentos em relação a ela. Mas tinha-o feito de uma maneira tão insensível que me sentia exposto e ferido com as suas citações, um pobre diabo hesitante. Disse-lho

ao passarmos por Zofingen.

Ela pousou o tricô no colo e ficou durante muito tempo a olhar em frente, para a auto-estrada.

- Isso aconteceu-me tantas vezes, no meu trabalho como secretária-chefe... Homens que queriam alguma coisa de mim, mas que não o assumiam. Gostariam muito de ter

algo comigo, mas ao mesmo tempo não queriam tê-lo. Também constroem a coisa de tal maneira, que podem retirar-se imediatamente, sem se envolverem, ao fim e ao cabo.

Pareceu-me que era a mesma coisa contigo. Dás um primeiro passo, que se calhar também não é passo nenhum, fazes um gesto que não te custa e com o qual não arriscas

nada. Falas de humilhação... Não quis humilhar-te. Oh, merda por que razão é que só consegues ser sensível com os teus próprios melindres?

Virou a cabeça. Parecia estar a chorar. Mas eu não consegui ver.

Chegámos a Lucerna ao anoitecer. Ao chegarmos perto da água, eu não quis continuar. A auto-estrada tinha pouco trânsito, mas começara a nevar. Eu conhecia o Hotel

des Alpes de antigas viagens para o Adria. Na recepção, ainda existia a gaiola com a original gralha indiana. Quando nos viu, crocitou:

- Agarrem, que é ladrão! Agarrem, que é ladrão!

Ao jantar, comemos Geschnetzelten à moda de Zurique e Ros-ti. Durante a viagem, tínhamos começado a discutir se o sucesso obriga o artista a desprezar o seu público.

A Ròschen constara-me um concerto com o Serge Gainsbourg, em Paris, em que o público aplaudira tanto mais agradecido quanto maior o desprezo com que fora tratado

pelo artista. Desde então, esta questão preocupava-me, e tinha-se alargado a um problema maior: se uma pessoa pode envelhecer sem desprezar a Humanidade. AJudith

opôs-se durante bastante tempo à tese da relação entre o sucesso artístico e o desprezo pelo humano. Ao terceiro copo de Fendant, cedeu.

- Tens razão, o Beethoven acabou por ficar surdo. A surdez é a expressão mais perfeita do desprezo pelo meio que nos rodeia.

Dormi profundamente e bem no meu monástico quarto de pessoa só. Partimos cedo para Locarno. Quando saímos de dentro do túnel de S. Gotardo, o Inverno terminara.

11

Suite em si bemol



Chegámos por volta do meio-dia, ficámos nos quartos de um hotel perto do lago e comemos num terraço envidraçado com vista para os barcos coloridos. O sol fazia com

que estivesse muito calor por detrás dos vidros. Eu estava nervoso por pensar no chá com o Tyberg. De Locarno para Monti há uma linha azul de teleférico. A meio

caminho, onde a cabina do funicular descendente se cruza com a que sobe, há uma estação, Madonna del Sasso, uma famosa capela de peregrinação que não é bonita mas

está num sítio bonito. Fomos até lá pelo caminho de romaria, calçado com pedras grandes e redondas. Poupámo-nos ao resto da subida apanhando o teleférico.

Descrevendo inúmeras curvas, percorremos a rua até casa do Tyberg, numa pequena praça com uma estação dos Correios. Estávamos diante de um muro com mais de três

metros de altura, que descia até à rua, e ao longo do qual se estendia um gradeamento de ferro forjado. O pavilhão do canto e as árvores e arbustos atrás do gradeamento

deixavam adivinhar o local sobranceiro da casa e do jardim. Tocámos, abrimos a porta maciça, subimos as escadas até ao jardim da frente e vimos diante de nós uma

casa com dois andares, despretensiosa e pintada de vermelho. Ao lado da entrada vimos uma mesa de jardim e umas cadeiras iguais às dos Jardins da Cerveja. A mesa

estava coberta com muitos livros e manuscritos. O Tyberg desenvencilhou-se da manta de pêlo de camelo e dirigiu-se a nós, alto, com um andar ligeiramente flectido

para a frente, cabelo branco farto, barba grisalha bem aparada e sobrancelhas farfalhudas. Tinha óculos de leitura, por sobre os quais nos observava com uns olhos

castanhos cheios de curiosidade.

- Cara senhora Buchendorff, que bom ainda se lembrar de mim. E este é o senhor seu tio. Bem-vindo também à Villa Sempre verde. Já nos encontrámos uma vez, contou-me

a sua sobrinha. Não, deixe - interrompeu quando eu quis começar a falar -, lembrar-me-ei sozinho. Estou neste mesmo momento a trabalhar nas minhas memórias - indicou

a mesa -, e gosto de a exercitar.

Levou-nos através da casa para o jardim das traseiras.

- Vamos dar um pequeno passeio? O mordomo está a preparar o chá.

O caminho do jardim conduziu-nos encosta acima. O Tyberg perguntou à Judith como estava, quais as suas perspectivas e como ia o trabalho nas IQR. Tinha uma maneira

calma e agradável de fazer as perguntas e de mostrar o seu interesse pela Judith através de pequenas observações. Apesar disso, espantei-me com a sinceridade dela

que, sem mencionar o meu nome ou o meu papel, lhe contou a sua saída das IQR. E da mesma maneira me espantou a reacção do Tyberg. Não estava nem céptico em relação

à descrição da Judith, nem indignado com nenhum dos envolvidos, do Mischkey ao Korten, e nem manifestou compaixão, nem pena. Tomava apenas conhecimento do que a

Judith ia contando.

Ao chá, o mordomo serviu bolinhos. Estávamos sentados num grande salão com um piano de cauda, a que o Tyberg chamava a sua sala de música. A conversa abordava agora

a situação económica. A Judith fazia malabarismos com o capital e o trabalho, entradas e saídas, balanço do comércio externo e produto interno bruto. O Tyberg e

eu encontrámo-nos na tese da balcanização da República Federal da Alemanha. Ele concordou tão rapidamente comigo que primeiro tive medo de que me tivesse percebido

mal e achasse que existiam demasiados turcos. Mas ele também queria dizer que os comboios eram cada vez menos numerosos e andavam cada vez mais atrasados, que os

Correios trabalhavam cada vez menos e com menos seriedade e que a Polícia estava cada vez mais atrevida.

- Sim - disse ele pensativamente -, também existem tantos regulamentos que os próprios funcionários não os levam a sério; dependendo do estado de espírito, umas

vezes empregam-nos severamente, outras desleixadamente, e às vezes nem sequer os empregam. É apenas uma questão de tempo até

que o bakschisch} reja a vontade e a disposição. Por vezes fico a

pensar que tipo de sociedade industrial se irá criar a partir disso. A burocracia feudal pós-democrática?

Adoro este tipo de conversas. Infelizmente, o Philipp, apesar de ler um livro de vez em quando, só se interessa por mulheres, e o horizonte do Eberhard não vai para

além do tabuleiro com os sessenta e quatro quadrados. O Willy reflectia nas grandes perspectivas evolutivas e namorava o pensamento de que o mundo, ou aquilo que

os homens deixassem ficar dele, seria conquistado pelos pássaros na próxima era.

O Tyberg examinou-me longamente.

- Claro. Como tio da senhora Buchendorff, não tem de se chamar também Buchendorff. O senhor é o procurador do Ministério Público reformado, o doutor Selb.

- Não sou reformado, saí em 1945.

- Foi saneado, suponho - disse o Tyberg.

Não quis explicar-me. A Judith compreendeu e intromete-se.

- Sair não quer dizer grande coisa. A maioria retornou. O tio Gerd, não; não porque não tivesse podido, mas porque não quis continuar.

O Tyberg continuou a examinar-me. Eu não me sentia nada bem na minha pele. O que é que se deve dizer quando estamos sentados diante de alguém que quase levámos à

morte com averiguações falseadas? O Tyberg queria saber mais.

- Então, depois de 1945, já não quis continuar a ser procurador do Ministério Público. Isso interessa-me. Quais foram os seus motivos?

- Quando tentei uma vez explicar isso à Judith, ela achou que os meus motivos tinham sido mais de natureza estética do que moral. Repugnou-me a atitude que os meus

colegas exibiam durante e depois da reintegração, a ausência de qualquer consciência da sua própria culpa. É claro que poderia ter-me reintegrado com uma outra atitude

e com consciência da minha culpa. Mas, dessa maneira, ter-me-ia sentido como um estranho, e então preferi ficar realmente de fora.

- Quanto mais olho para si, tanto mais claramente o vejo novamente como o jovem procurador. Claro que se modificou. Mas os seus olhos azuis ainda brilham, apenas

um pouco mais baços, e onde agora tem essa cratera no queixo, havia antes apenas uma covinha. O que é que pensou naquele tempo, quando nos apanhou, nos caçou, a

mim e ao Dohmke? Terminei agora de me ocupar do processo, nas minhas memórias.

- No meu caso, foi também apenas há pouco que o processo voltou a surgir. Por essa razão é que eu estou contente por poder falar consigo. Encontrei-me em São Francisco

com a companheira do professor Weinstein, a testemunha de acusação de então, e fiquei a saber que o testemunho dele era falso. Foi pressionado por alguém da fábrica

e alguém das SS. Tem alguma suspeita, ou porventura sabe quem das IQR poderia ter interesse no seu desaparecimento e no do Dohmke? Sabe, está a dar-me que fazer,

abusarem de mim como instrumento de interesses obscuros.

A uma campainhada do Tyberg o mordomo entrou, levou a loiça e serviu xerez. O Tyberg ficou sentado com a testa franzida e olhando o vazio.

- Comecei a pensar nisso quando estava preso preventivamente, e até hoje não consegui encontrar nenhuma resposta. Pensei sempre no Weismúller. Esse também foi o

motivo pelo qual não quis voltar às IQR imediatamente depois da guerra. Mas não descobri nenhuma confirmação para esse pensamento. Também reflecti durante muito

tempo sobre o modo como o Weinstein poderia ter feito aquela acusação. Já me consternara que ele tivesse ido mexer na minha secretária, encontrado os manuscritos

na gaveta, os tivesse interpretado mal e me tivesse denunciado. Mas o seu testemunho sobre uma conversa que nunca tinha existido, entre o Dohmke e eu, atingiu-me

profundamente. Tudo para obter umas quaisquer vantagens no campo de concentração?, perguntei-me. Agora, ouço que o obrigaram a isso. Deve ter sido horrível para

ele. A companheira dele também o sabia? Contou-lhe que ele tentou con-tactar-me depois da guerra, e que eu recusei? Estava demasiado ferido, e ele era demasiado

orgulhoso para me falar por carta da pressão sob a qual estivera.

- O que é que aconteceu ao seu trabalho de investigação nas IQR, senhor Tyberg?

- Foi continuado pelo Korten. Era, sem dúvida, o resultado de um trabalho conjunto entre o Korten, o Dohmke e eu. Fomos também os três que decidimos seguir primeiro

uma vertente da investigação e deixar a outra. Tudo aquilo era, por assim dizer, o nosso bebé, que mimávamos e protegíamos ciumentamente e do qual não deixávamos

ninguém aproximar-se. Nem sequer tínhamos confiado o segredo ao Weinstein, embora este tivesse um papel importante na nossa equipa, quase com os mesmos direitos

que nós, cientificamente falando. Mas quer saber o que foi feito da investigação. Desde a crise do petróleo que, por vezes, me interrogo se não será novamente muito

actual. Era sobre a síntese de combustíveis. Tínhamos seguido caminhos diferentes de Bergius, Tropsch c Fischer, porque desde o início reconhecemos a importância

decisiva do factor dos custos. O Korten continuou a desenvolver esse processo concebido por nós com enorme empenho, e levou-o ao esplendor produtivo. Esse trabalho

foi o merecido fundamento da sua subida meteórica nas IQR, apesar de o método ter deixado de ser importante após o fim da guerra, contudo, acho que o Korten ainda

tratou de o proteger com um copyright como o método Dohmke-Korten-Tyberg.

- Não sei se consegue imaginar o quanto me aflige que o Dohmke tenha sido então executado; e, do mesmo modo, a minha alegria por o senhor ter conseguido escapar.

Claro que é apenas por curiosidade, mas importar-se-ia de me contar como o conseguiu?

- Essa é uma longa história. Não me importo de lha contar, mas... Ficam com certeza para o jantar, não é verdade? Contá-la-ei depois. Vou dizer ao mordomo para preparar

o jantar e para atear o fogo na lareira. E até então... Toca algum instrumento, senhor Selb?

- Toco flauta, mas não tive a disposição nem o vagar necessário durante todo o Verão e o Outono.

Levantou-se, tirou da cómoda estilo Biedermeier um estojo de flauta e deixou-mo abrir.

- Acha que consegue tocar com ela?

Era uma Buffet. Encaixei-a e toquei algumas passagens. Tinha um som maravilhosamente suave e contudo claro, rejubilante nos agudos, apesar do meu deficiente começo

depois de uma longa pausa.

- Gosta de Bach? Que tal a suite em si bemol?

Tocámos música até ao jantar, depois da suite em si bemol ainda o concerto em ré maior de Mozart. Ele tocava de forma segura e muito expressiva. Às vezes tinha de

fazer um pouco de batota nas passagens mais rápidas. No final das peças, a Judith pousava o tricô e batia palmas.

Comemos pato recheado com castanhas, acompanhado por Klõsse e couve roxa. Não conhecia o vinho, um Merlot fru-tado da região de Ticino. A lareira, o Tyberg pediu-nos

para guardarmos segredo da sua história. Iria ser tornada pública brevemente, mas até lá agradecia discrição.

- Eu estava à espera da execução nas celas da morte, na penitenciária de Bruchsal.

Descreveu a cela, o quotidiano do condenado à morte, o contacto por batidas com o Doh, na cela ao lado, a manhã em que foram buscar o Dohmke.

- Poucos dias depois, também foram buscar-me, a meio da noite. Dois SS exigiam a minha transferência para um campo de concentração. E então reconheci o Korten num

dos oficiais das SS.

Naquela mesma noite, fora levado pelo Korten e um outro homem das SS até à fronteira para lá de Lõrrach. Do outro lado, esperavam-me dois homens da Hoffmann-La Rache.

- No dia seguinte, bebi chocolate quente e comi croissants como em plena paz.

Ele era um bom contador de histórias. AJudith e eu ouvíamos fascinados. O Korten. Novamente, o Korten assombrava-me ou enchia-me de espanto.

- Mas por que é que isso não podia ser tornado público?

- O Korten é mais modesto do que parece. Pediu-me insistentemente para calar o seu papel na minha fuga. Eu sempre respeitei isso, não apenas como uma expressão de

modéstia como de sabedoria. Aquele gesto não bateria certo com a imagem de líder da fábrica que ele cultivava. Apenas agora, no Verão, é que revelei o segredo. A

posição do Korten como líder da fábrica é hoje reconhecida por todos, e penso que lhe agradará quando o episódio tiver o seu lugar no artigo biográfico que o jornal

Die Ze.it pretende publicar, na Primavera, por ocasião do seu septuagésimo aniversário. Por essa razão contei a história ao repórter que está a fazer essa investigação

de fundo e que esteve cá em casa há alguns meses.

Juntou mais um cavaco ao fogo. Eram onze horas.

- Ainda uma pergunta, senhora Buchendorff, antes que a noite termine. Gostaria de trabalhar para mim? Desde que estou a escrever as minhas memórias que procuro alguém

que investigue por mim, no arquivo das IQR, em outros arquivos e nas bibliotecas, que saiba fazer uma leitura crítica, que se habitue à minha letra e que passe o

manuscrito final a limpo. Gostaria muito que pudesse começar no dia 1 de Janeiro. Trabalharia sobretudo em Mannheim, uma semana ou outra aqui. O ordenado não seria

pior do que até agora. Pense nisso até amanhã à tarde, telefone-me, e, se disser que sim, poderemos esclarecer os pormenores ainda amanhã.

Levou-nos até à porta do jardim. O mordomo esperava-nos com o Jaguar, para nos levar ao hotel. A Judith e o Tyberg despediram-se com beijos nas faces. Quando lhe

estendi a mão, piscou-me o olho com um sorriso.

- Tornaremos a ver-nos, tio Gerd?

12

Sardinhas de Locarno



Ao pequeno-almoço, perguntei àJudith o que achava da proposta do Tyberg. - Gostei dele - comecei.

- Acredito. Foram um belo número, vocês os dois. Quando o procurador do Ministério Público e a sua vítima se puseram a tocar música de câmara, não quis acreditar

nos meus ouvidos. Está muito bem que ele te agradasse, eu também gostei dele, mas o que é que tu pensas da sua proposta?

- Aceita-a, Judith. Penso que não te pode acontecer nada melhor.

- E que ele esteja interessado em mim como mulher, não me dificultará o trabalho?

- Isso pode acontecer-te em qualquer trabalho, e tu sabes lidar bem com isso. E o Tyberg é um cavalheiro, nunca te meterá a mão na perna enquanto estiver a ditar-te

os seus textos.

- E o que farei eu, quando ele terminar as memórias?

- Já te digo.

Levantei-me, dirigi-me ao buffet do pequeno-almoço e fui buscar, para terminar, um pão sueco com mel. Esta agora, Pensei. Estará ela a pensar em construir um lar?

De volta à mesa, disse:

- Ele lembrar-se-á de algo. Isso deverá ser a tua última preocupação.

- Ainda vou pensar nisso, enquanto dou um passeio em redor do lago. Vemo-nos ao almoço?

Eu sabia o que iria acontecer. Ela iria aceitar o emprego: telefonaria ao Tyberg às quatro horas e discutiria os pormenores com ele até ao fim da tarde. Decidi ir

à procura da minha casa para passar a velhice. Deixei um recado à Judith com os melhores desejos de boas negociações com o Tyberg, parti de carro ao longo do lago

até Brissago e atravessei de barco até Isola Bella, onde almocei. Depois dirigi-me às montanhas e dei uma grande volta que me levou de novo até ao lago, perto de

Ascona. Vi imensas casas para passar os últimos dias. Mas preferi não reduzir daquela maneira a minha expectativa de vida, comprando uma delas com o dinheiro do

meu seguro. Talvez o Tyberg me convidasse também para passar as próximas férias em casa dele.

Ao romper do crepúsculo, estava de volta a Locarno e passeei pela cidade enfeitada para o Natal. Procurei latas de sardinhas para a minha árvore de Natal. Na loja

de mercearias finas, debaixo das arcadas, encontrei sardinhas portuguesas com a designação do ano. Comprei uma lata de 1983, em verdes e vermelhos brilhantes, e

uma de 1984, num branco simples com letras douradas.

Na recepção do hotel esperava-me um recado do Tyberg. Ele teria muito gosto em mandar buscar-me para jantar. Em vez de lhe telefonar e deixar-me ir buscar, fui para

a sauna do hotel, onde passei três agradáveis horas, e fui deitar-me. Antes de adormecer ainda escrevi uma breve carta ao Tyberg, em que lhe agradecia.

As onze e meia, a Judith bateu à porta. Abri. Ela elogiou o meu pijama, e combinámos a partida para as oito.

- Estás satisfeita com a tua decisão? - Perguntei.

- Sim. O trabalho com as memórias vai durar dois anos, e sobre o futuro, o Tyberg também já pensou.

- Maravilhoso. Então, dorme bem.

Esqueci-me de abrir a janela e acordei do meu sonho. Estava a dormir com a Judith, mas ela era a filha que eu nunca tive e vestia uma saia ridícula. Quando abri

uma lata de sardinhas para mim e para ela, saiu de lá de dentro o Tyberg, tornou-se cada vez maior e finalmente encheu o quarto todo. Senti-me apertado, e acordei.

Já não consegui voltar a adormecer e fiquei contente quando chegou a hora de tomar o pequeno-almoço e, sobretudo, de finalmente nos irmos embora. Depois de S. Gotardo

começou novamente o Inverno, e levámos sete horas a chegar a Mannheim. Tinha intenções de visitar o Sergej na terça-feira. Este estava outra vez no hospital, depois

de uma nova intervenção cirúrgica, mas já não me sentia capaz. Convidei a Judith para beber sekte festejarmos o seu novo emprego, mas ela estava com dores de cabeça.

Por isso, bebi sozinho o sekt, a acompanhar as minhas sardinhas.

13

Não vê como o Sergej está a sofrer?



O Sergej Mencke estava internado na clínica Oststadt, num quarto duplo virado para o jardim. Naquele momento, a outra cama estava vaga. A perna pendia elevada de

uma espécie de sistema de roldanas e era mantida na posição oblíqua correcta por um sistema metálico de caixilhos e parafusos. Com excepção de poucas semanas, ele

passara os últimos três meses no hospital e a sua aparência era correspondentemente desgraçada. Apesar disso, conseguia ver-se facilmente que era um homem bonito.

Cabelos loiros claros, um rosto britânico comprido, com um queixo forte, olhos escuros e uma expressão melindrada e de superioridade em torno da boca. Infelizmente,


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