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4 APROXIMAÇÕES FRONTEIRIÇAS: SIMILARIDADES E DIFERENÇAS
O presente capítulo tem por objetivo dar passo à análise crítica em conjunto dos
romances trabalhados em separado nos dois capítulos que o antecederam. Tomo por
aproximação o entendimento de que duas obras podem avizinhar-se, por assim dizer, no
processo de comparação que se decida fazer entre elas, podendo resultar desse procedimento
do comparatista a evidência tanto de similaridades quanto de diferenças.
Por haver sido o primeiro capítulo da presente tese um segmento todo voltado para
apresentar as linhas gerais teóricas que viriam a ser desenvolvidas no corpo do trabalho, pude,
naquele momento, relacionar o raciocínio teórico em que me pauto com ambos os romances
em tela. Depois, dadas às particularidades de cada obra, cada qual mereceu um determinado
encadeamento teórico específico, algo que, contudo, não afasta a possibilidade de que o
direcionamento justaposto no capítulo inicial retorne aqui de forma mais direta e compactada.
Ao contrário do que sucedeu no primeiro capítulo, entretanto, a comparação retomada se verá
ilustrada por exemplificações as quais, também em justaposição, visam tornar mais evidentes
as aproximações até aqui apenas vislumbradas.
4.1 Da literariedade em ambas
Literaturnost (em português, literaturidade ou literariedade) é um termo cunhado pelo
formalista russo Roman Jakobson para contemplar em sua explicação “aquilo que torna
determinada obra uma obra literária” (JAKOBSON, [1919] 1921, p.11), dentro da concepção
formalista de estabelecer a tese a partir da qual no campo dos estudos literários deveria ser
dada maior atenção ao estudo dos traços distintivos da obra de literatura (Cf.
EIKHENBAUM, [1920] 1973, p.15).
Não obstante, a literariedade não é um aspecto isolado na abordagem desses então
jovens estudiosos russos sobre a importância de um olhar mais atento para as especificidades
do texto literário. A noção de literariedade se adere a uma série de outras noções às quais se
vê de algum modo atrelada. Dentre elas, está a noção de forma, que terminaria por emprestar
parte de sua terminologia para a maneira como o movimento “formalismo russo” passaria a
ser denominado, muitas das vezes de modo depreciativo
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.
Literariedade e forma podem já se ver interligadas desde as primeiras concepções
formalistas, donde sobressai toda uma busca por enfatizar um olhar não necessariamente mais
90
Remeto o leitor para o tópico 1.1 da presente tese, onde procurei dar maior ênfase à história de formação do
grupo.
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voltado para os elementos constituintes da obra de literatura, mas, principalmente, para a
utilização particular que deles se faz (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13), sendo essa de
fato a ação específica da literaturnost, ou, ainda melhor, o ato que possibilitará que se perceba
a literaturidade da obra. Nesse aspecto, torna-se bastante interessante a noção de forma que
sobressai dos pressupostos formalistas, os quais chamam a atenção para que seja ela, a forma,
vista não mais como mero invólucro para seu conteúdo; mas, antes, como uma noção que traz
em si uma integridade dinâmica. Dessa maneira, tem-se que dito caráter dinâmico não
permitiria o “engessamento” da forma, permitindo, sim, o seu próprio desenvolvimento, o
qual se dá pela ligação de seus elementos constituintes através de um movimento dinâmico de
correlação e integração internas (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Essa possibilidade
de dinamismo interior concede à forma um caráter de literariedade, porquanto uma das
características próprias da literatura.
Tal é o caso das obras em destaque no presente trabalho, nas quais o elemento
constitutivo conto mantém a correlação e a integração características do gênero que
representa, ao mesmo passo que, pela percepção de elos narrativos introduzidos e pouco a
pouco repetidos, empresta, assim, sutilmente, a mesma correlação e integração que o
segmento romanesco capítulo concede à trama e ao drama preservados e próprios da forma,
do gênero romance. Ocorrida assim de maneira tão peculiar a relação forma/fundo (conteúdo,
elementos constituintes) nos romances aqui em evidência, a ação compositiva se verifica
como um caráter de literariedade que, em verdade, só se completa em seu resultado: a ação
provocada de estranhamento, um efeito de estranheza.
A noção de estranhamento deriva do neologismo ostranenie, introduzido à língua
russa por Viktor Chklovski com vistas a dar conta da característica de desautomatização, de
singularização a qual, segundo o formalista, é própria do objeto literário e da linguagem
literária que implementa, provocando no leitor um efeito receptivo de estranheza, saindo do
lugar comumente dedicado à percepção usual dos objetos para uma esfera de percepção
inabitual, diferente, surpreendente. Nesse sentido, o estranhamento levado ao nível de caráter
estético “é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (CHKLOVSKI,
[1917] 1973, p. 54).
O estranhamento assim intimamente ligado à noção de literariedade revela poder
operar ao nível do estético. Desse modo, podemos dizer que em ambas as obras ora em
verificação sua literariedade é percebida na ação de seus estranhamentos, de seu efeito de
estranheza por sobre o leitor, surtindo desse efeito a condução possível do receptor (sem que
talvez disso ele se dê conta) ao contato com imaginários. É mister, pois, tocar no exame
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