Corte Interamericana de Direitos Humanos Caso La Cantuta Vs. Peru Sentença de 29 de novembro de 2006



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III. A agressão inadmissível à Universitas
36. Há um outro aspecto deste Caso La Cantuta que me sensibiliza profundamente, no momento em que completo 12 anos como Juiz Titular desta Corte e 30 anos como professor universitário.202 Vejo-me assim na obrigação de deixar constância de minha fé inquebrantável na Universitas, e de minha convicção de que, no cas d'espèce, ademais do crime de Estado cometido em detrimento das vítimas (um professor e nove estudantes universitários) e seus familiares, se cometeu uma agressão inadmissível a uma instituição dotada de caráter de universalidade por excelência: a Universidade – no caso concreto, a Universidade de La Cantuta.
37. No dia 6 de julho de 1953, a Universidade de La Cantuta abriu suas portas; seu nome se deve a que "foi construída em uma antiga urbanização que levava o nome da flor heráldica dos incas, que se cultiva ao longo do vale do Mantaro, com tons vermelhos e amarelos".203 A referida Universidade formava futuros docentes para ensinar nas escolas (ensino médio) do país, ou seja, cumpria sua função docente e social (apesar de que já se encontrava invadida por efetivos militares desde 21 de maio de 1991).204
38. Mas, além da função docente e social que representa em cada país, a Universidade dificilmente se realizaria sem a função supranacional – além do Estado – que lhe pertence por exigência intrínseca.205 Amplas vias de comunicação e entendimento se encontram hoje disponíveis às novas gerações, mais que em outras épocas, para o intercâmbio de ideias, o refinamento da capacidade de reflexão, discernimento e crítica, o diálogo intergeracional (entre professores e alunos), na busca da construção de um mundo mais justo e melhor para as gerações futuras. Somos chamados a repensar todo o universo conceitual em que nos formamos, em nossa visão tanto do sistema internacional como, no âmbito nacional, das instituições públicas, a começar pelo próprio Estado numa sociedade democrática.
39. É inadmissível que forças armadas invadam um campus universitário do modo mais arbitrário possível. O campus universitário é o espaço de livre pensamento, onde a livre produção e circulação de ideias devem ser preservadas e cultivadas. Ao longo dos séculos, atribuiu-se à Universidade a natureza de alma mater ("mãe criadora", alma do latim alere, significando alimentar e fazer crescer), como geradora e promotora das ideias e do saber, para engendrar e transformar o ser humano por obra do saber, para que seja capaz de dar resposta aos desafios do mundo em que vive. A invasão armada não é a única forma de agressão à Universidade tal como concebida ao longo dos séculos,206 mas é, talvez, a mais crua agressão à produção e livre circulação de ideias. No presente Caso de La Cantuta, como já se salientou, os agentes de segurança do Estado invadiram o campus universitário, adentraram as residências dos professores e dos estudantes, para sequestrar e executar suas vítimas, em nome da "segurança do Estado". A própria Universitas foi também agredida pelas forças da repressão. O tempo da busca da luz foi indevidamente tomado pelos arautos estatais das trevas.
40. Um Juiz se aposentando da Corte Interamericana – que graças à Providência nunca faltou um dia sequer de sessões, e nunca se escusou de participar de qualquer deliberação da Corte nos 12 anos de serviços a ela prestados como Juiz Titular – tem todo o direito de deixar constância, neste Voto Fundamentado, de uma de suas muitas reminiscências, de pertinência para as considerações sobre este caso. Pouco depois do fim do regime Fujimori, visitei o Peru como Presidente da Corte Interamericana, para uma série de providências; nessa ocasião, ao receber o título de Professor Honorário de outra Universidade que sofreu nos dias sombrios daquele regime,207 no meu discurso de 13 de setembro de 2001, na Reitoria da Universidade Nacional Maior de San Marcos, ressaltei inter alia que
"Depois dos momentos de sombra, vieram os de luz. Mas ninguém pode assegurar-nos – e isso em relação a qualquer país – que as trevas não tornem a chegar. Se isso viesse a acontecer, novamente, a única coisa segura seria que a essas trevas se seguiria outra vez a luz –, como na sucessão de noite e dia, ou de dia e noite. Assim como as trevas chegam quando se desvanece a luz, também os primeiros raios de luz brotam dos últimos refúgios da escuridão. A tensão do claro-escuro, dos avanços mesclados aos retrocessos, é própria da condição humana, como há séculos diziam, com tanta lucidez, os antigos gregos (sempre tão contemporâneos), num de seus maiores legados à evolução do pensamento humano.
Os instrumentos internacionais de direitos humanos contribuíram decisivamente para despertar a consciência humana para a necessidade de proteger os indivíduos em todas e quaisquer circunstâncias. Os eventos no Peru nos últimos meses revelaram um verdadeiro reencontro do Peru com sua melhor tradição e pensamento jurídicos (...). Quando isso ocorre, podemos dizer que a legislação internacional dos direitos humanos efetivamente alcançou as bases da sociedade nacional.

Nada do que ocorreu nos últimos meses nesse país irmão da América Latina, tão rico em cultura e em tradição jurídica, que tenho a honra de visitar hoje, teria sido possível sem a admirável mobilização da sociedade civil peruana, e sua repercussão nas instituições públicas. Isso mostra a importância das instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos: elas representam a última esperança dos que já haviam perdido a confiança e a fé na justiça, sobretudo os desamparados, oprimidos e esquecidos.


Dificilmente poderá haver, para um jusinternacionalista, uma experiência tão gratificante como a que estou vivendo nesses quatro dias de visita ao Peru. (...) Esta cerimônia se reveste, para mim, de grande valor simbólico. Venho da Academia, à qual continuarei pertencendo. Pertenço à Universidade, à Universitas, que tem uma vocação universal por definição. Como jusinternacionalista, sustento o primado da razão da humanidade sobre a razão de Estado". (...).208
41. Dois anos depois, em cerimônia congênere em outra Universidade peruana, em 18 de novembro de 2003, presidida pelo Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Peru (doutor S. Lerner Febres), também Presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação Nacional (CVR) do Peru, me permiti destacar, em meu discurso na ocasião,
"a aplicabilidade continuada dos princípios do direito das gentes, das leis de humanidade e das exigências da consciência pública, independentemente do surgimento de novas situações (...)".209

A Universitas se reencontrava com sua verdadeira vocação, de centro do cultivo e da irradiação de cultura, da livre circulação das ideias, do reconhecimento do necessário primado do Direito sobre a força,210 da intangibilidade dos direitos inerentes à pessoa humana. Depois de anos de trevas veio a luz. A Universitas, tal como originalmente concebida, era efetivamente um centro de irradiação cultural, de ensino e transmissão da cultura.


42. Ao longo do século XIX e início do século XX, simultaneamente a ataques que sofreu em numerosos países, a Universidade passou tragicamente a perder de vista o sentido original de sua vocação, ao gradualmente limitar-se a centro de pesquisa profissional "especializada", substituindo assim a cultura, de tanta importância para a vida. Nos nossos tempos, a Universidade continua sendo atacada e banalizada, de várias maneiras. Num célebre manifesto de 1930, em defesa da recuperação pela Universidade de sua função de ensino e transmissão das disciplinas culturais, J. Ortega e Gasset concluiu:
"A vida é um caos, uma selva selvagem, uma confusão. O homem se perde nela. Mas sua mente reage ante essa sensação de naufrágio e perda: trabalha para encontrar na selva 'vias', 'caminhos'; ou seja: ideias claras e firmes sobre o Universo, convicções positivas sobre o que são as coisas e o mundo. O conjunto, o sistema delas é a cultura no sentido verdadeiro da palavra; todo o contrário, pois, de ornamento. Cultura é o que salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja tragédia sem sentido ou radical envilecimento.
Não podemos viver humanamente sem ideias. Delas depende o que façamos (...). É forçoso viver à altura dos tempos e muito especialmente à altura das ideias do tempo. Cultura é o sistema vital das ideias em cada tempo. (...) A Universidade contemporânea (...) [renunciou] quase por completo ao ensino ou à transmissão da cultura".211
43. A violência e a agressão cometidas contra o cultivo e a transmissão intergeracional das ideias se revestiram de diversas formas. Conforme ressalta um livro originalmente publicado em Bolonha em 1991 (Il Passato, la Memoria, l'Oblio),
"(...) A história do nosso século, como bem sabemos, ainda que tratemos de esquecê-la, está cheia de censuras, supressões, dissumulações, desaparecimentos, condenações, retratações públicas e confissões de traições inomináveis, declarações de culpabilidade e de vergonha. Obras inteiras de história foram reescritas apagando os nomes dos heróis de um tempo, catálogos editoriais foram mutilados, foram roubadas fichas dos catálogos das bibliotecas, foram reeditados livros com conclusões diferentes das originais, passagens inteiras foram suprimidas, foram antologizados textos numa ordem cômoda que permitisse documentar inexistentes filiações ideais e imaginárias ortodoxias políticas.
Primeiro, queimaram-se livros. Depois, os fizeram desaparecer das bibliotecas com a intenção de apagá-los da história. Primeiro se eliminaram inumeráveis seres humanos, depois se tratou de suprimir essa supressão, de negar os fatos, de impedir a reconstrução dos acontecimentos, de proibir o inventário de vítimas, de proibir a lembrança. (...)".212
44. Uma Universidade não pode cumprir sua função se o livre fluxo das ideias de cada tempo, que constitui a cultura, é coibido pelas forças de segurança do Estado. A invasão armada de uma Universidade, além de um grave crime em detrimento dos universitários vitimados (sequestrados, torturados, executados e desaparecidos), é uma agressão obscurantista a uma instituição supranacional (a Universitas) – agressão esta que afeta todo o tecido social. Durante o século XX, Universidades em diversas partes do mundo foram agredidas. Numerosas Universidades, num ou noutro momento de sua existência, foram violadas e violentadas pelas forças de segurança do Estado.213
45. Algumas dessas agressões tornaram-se célebres, e figuram hoje na bibliografia especializada do Direito Internacional dos Direitos Humanos. É o caso da Universidade de La Cantuta, alçado ao conhecimento desta Corte Interamericana.214 Outros, que não chegaram a sê-lo, deixaram igualmente lições; por exemplo, para evocar outro episódio conhecido, num passado mais distante,
"O ingresso dos cavalos da polícia na Universidade de Buenos Aires e a repressão violenta e feroz da chamada 'noite dos cassetetes longos’, de julho de 1966, constitui um marco fundamental do projeto político repressivo das forças armadas. Todos esses acontecimentos contribuíram em grande medida para empurrar os jovens da classe média para o campo da oposição nacional e popular'".215
Apesar da repressão contra as Universidades, a liberdade de espírito reagiu contra as forças repressivas estatais, que menosprezaram os ideais das novas gerações, a força de suas ideias e de seu propósito de construir um mundo melhor que aquele que lhes foi legado. Depois das trevas veio a luz.
46. A Universitas é inviolável. As forças de repressão, não satisfeitas em vitimar os seres humanos pensantes, ao longo de tantos séculos eliminaram os mais fiéis companheiros destes últimos: os livros. Destruíram ou queimaram bibliotecas inteiras,216 mas não conseguiram impedir o ressurgimento dos ideais humanos emancipadores. Ao longo dos séculos, os opressores mataram seres humanos que pensavam, queimaram seus restos mortais (como neste Caso La Cantuta); queimaram os fiéis companheiros dos que pensavam –os livros –, mas não conseguiram extirpar o livre pensamento, os ideais dos jovens, o direito de dissentir, a liberdade do espírito.
47. Como depois das trevas irrompe gradualmente a luz, no chiaroscuro da vida dos indivíduos e dos povos, da existência humana, não há que passar despercebido que, nesta Sentença, a Corte Interamericana avaliou "de maneira positiva que em junho do corrente ano o Presidente da República tenha pedido perdão às autoridades da Universidade de La Cantuta" (par. 233). A Corte também cuidou para que o suplício do professor e dos nove estudantes universitários assassinados ou desaparecidos fique na memória não somente dos familiares e seres queridos, mas também na memória coletiva, como forma de honrar as vítimas de maneira a resistir à erosão do tempo.
48. Assim, tal como o fez na recente Sentença no Caso Presídio Miguel Castro Castro, também nesta Sentença no Caso La Cantuta a Corte igualmente valorizou a existência do monumento em local público denominado "O Olho que Chora",
"criado a pedido da sociedade civil e com a colaboração de autoridades estatais, o que constitui um importante reconhecimento público às vítimas da violência no Peru. No entanto, o Tribunal considera que o Estado deve assegurar-se de que, no prazo de um ano, as dez pessoas declaradas vítimas de execução ou de desaparecimento forçado nesta Sentença estejam representadas no referido monumento, caso já não estejam e caso seus familiares assim o desejem. (...)" (par. 236).
IV. A inadmissibilidade de violações do Jus Cogens
49. Ao concluir este Voto Fundamentado, meu último voto como Juiz Titular desta Corte, gostaria de voltar a meu ponto de partida. Os crimes de Estado acarretam sérias consequências jurídicas. No momento em que termino de escrever este Voto Fundamentado, há 12 pedidos de extradição do ex-presidente A. Fujimori apresentados pelo Peru ao Chile,217 entre os quais se encontra o referente à responsabilidade pelo ocorrido neste Caso La Cantuta. Recentemente, em outro caso solucionado por esta Corte, o Caso Goiburú e outros Vs. Paraguai (Sentença de 22 de setembro de 2006), revelaram-se os horrores da chamada "Operação Condor", no âmbito da qual se cometeram crimes de Estado numa escala transfronteiriça ou interestatal.218 A reação da consciência jurídica se manifesta hoje no reconhecimento de que o dever amplo de investigar, para assegurar o respeito dos direitos humanos consagrados na Convenção Americana (artigo 1.1), também se aplica em escala interestatal, no exercício da garantia coletiva pelos Estados Partes na Convenção Americana (como o são o Chile e o Peru).
50. No meu Voto Fundamentado no recente Caso do Massacre de Pueblo Bello (Sentença de 31 de janeiro de 2006) desenvolvi (bem como em numerosos votos anteriores) considerações acerca do amplo alcance do dever geral de garantia (artigo 1.1 da Convenção) e das obrigações erga omnes de proteção da Convenção (pars. 2 a 13). Na sentença no presente Caso La Cantuta, a Corte, ao salientar que os fatos do cas d'espèce infringiram normas imperativas do Direito Internacional (jus cogens), avaliou positivamente os esforços do Estado demandado por cumprir "seu dever – decorrente da obrigação de investigar – de solicitar e impulsionar, mediante medidas pertinentes de natureza judicial e diplomática, a extradição de um dos principais processados" (pars. 159 a 160). Daí se pode desenvolver uma aproximação ou convergência entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Penal Internacional.
51. Ao destacar o amplo alcance do artigo 1.1 da Convenção Americana, a Corte afirmou, em seguida, a obrigação dos Estados Partes de investigar as violações dos direitos humanos, e de julgar e punir os responsáveis (par. 160). O cumprimento dessa obrigação cresce em importância ante a gravidade dos fatos deste Caso La Cantuta, enfatizada com eloquência logo no início de um relato a respeito:
"Contra o que pretende, a impunidade não oculta o crime, o agiganta. Ao crime dos autores – materiais e intelectuais –, se acrescenta a cadeia de crimes dos acobertadores. Ao sequestro, assassinato a sangue frio, enterro clandestino, desenterro e incineração dos corpos, soma-se a mentira, a denegação e o atraso na administração da justiça, o legicídio. Salvo honrosas exceções, promotores e juízes, conselheiros supremos, congressistas, generais e governantes civis ingressaram no voluminoso expediente da cúmplice impunidade com que se pretende devolver à escuridão da vala comum a causa dos nove estudantes e do professor da Universidade de La Cantuta, assassinados a sangue frio na madrugada de 18 de julho de 1992".219
52. Foi um crime de Estado, que envolveu, com animus agressionis, uma cadeia de comando, composta por numerosos agentes do poder público (dos diferentes poderes do Estado), do Presidente da República até os autores das execuções extrajudiciais e demais violações dos direitos humanos. Ao passar às consequências jurídicas dessas violações, esta Corte salientou, nesta Sentença sobre o Caso La Cantuta, que
"Ante a natureza e gravidade dos fatos, mais ainda em se tratando de um contexto de violação sistemática de direitos humanos, a necessidade de erradicar a impunidade se apresenta perante a comunidade internacional como um dever de cooperação interestatal para esses efeitos. O acesso à justiça constitui norma imperativa do Direito Internacional e, como tal, gera obrigações erga omnes para os Estados de adotar as medidas que sejam necessárias para não deixar impunes essas violações, seja exercendo sua jurisdição para aplicar o direito interno e o Direito Internacional para julgar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis por fatos dessa natureza, seja colaborando com outros Estados que o façam ou procurem fazê-lo. A Corte recorda que, em conformidade com o mecanismo de garantia coletiva estabelecido na Convenção Americana, simultaneamente às obrigações internacionais regionais e universais na matéria, os Estados Partes na Convenção devem colaborar entre si nesse sentido" (par. 160).220
53. Fica, pois, consolidada na presente Sentença a ampliação do conteúdo material do jus cogens, a abranger o direito de acesso à justiça lato sensu, sem o qual simplesmente não existe o Estado de Direito. Espero sinceramente que a Corte mantenha essa posição no futuro, e não admita qualquer intenção de deter sua jurisprudência garantista e emancipadora do ser humano a esse respeito, pois esse domínio de proteção da pessoa humana não comporta nem admite retrocessos. Espero sinceramente que a Corte continue sempre avançando na construção jurisprudencial acerca das normas imperativas do Direito Internacional.
54. Como reação da consciência jurídica universal (a qual, para mim, constitui a fonte material última de todo o Direito), se instituiu em nossos tempos um regime jurídico verdadeiramente universal de proibição absoluta da tortura, dos desaparecimentos forçados de pessoas e das execuções sumárias e extrajudiciais. Essa proibição pertence ao domínio do jus cogens. E esses crimes contra a humanidade (situados na confluência do Direito Internacional dos Direitos Humanos com o Direito Penal Internacional), como a Corte destacou na Sentença no Caso Almonacid e acaba de reiterar nesta Sentença no Caso La Cantuta, afetam não somente os vitimados, senão à humanidade como um todo (par. 225).
55. Daí o dever estatal de investigar, julgar e punir os responsáveis, para evitar a repetição de fatos tão graves como os do caso concreto. Ademais, acrescentou a Corte,
"(...) O Estado não poderá arguir nenhuma lei ou disposição de direito interno para eximir-se da determinação da Corte de investigar e, oportunamente, punir penalmente os responsáveis pelos fatos de La Cantuta. Em especial, tal como o fez desde o proferimento da Sentença deste Tribunal no Caso Barrios Altos Vs. Peru, o Estado não poderá voltar a aplicar as leis de anistia, as quais não gerarão efeitos no futuro (...), nem poderá argumentar prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, nem o princípio non bis in idem (...), ou qualquer excludente semelhante de responsabilidade para escusar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis. (...)
(...) Do mesmo modo, em função da efetividade do mecanismo de garantia coletiva estabelecido no âmbito da Convenção, os Estados que nela são Partes devem colaborar entre si para erradicar a impunidade das violações cometidas neste caso, mediante o julgamento e, caso seja pertinente, a punição dos responsáveis" (pars. 226 e 227).
56. A consciência jurídica definitivamente despertou para hoje revelar com transparência a ocorrência de verdadeiros crimes de Estado, os quais são levados a um tribunal internacional (como esta Corte Interamericana) de direitos humanos, bem como prontamente reagir contra eles – o que provavelmente seria impensável, ou não se poderia prever há algumas décadas. E, entretanto, é o que hoje ocorre, como o testemunham as Sentenças desta Corte nos Casos Barrios Altos Vs. Peru (de 14 de março de 2001), Myrna Mack Vs. Guatemala (de 25 de novembro de 2003), do Massacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala (de 29 de abril de 2004 e de 19 de novembro de 2004), do Massacre de Mapiripán Vs. Colômbia (de 7 de março de 2004), do Massacre da Comunidade Moiwana Vs. Suriname (de 15 de junho de 2005), dos Massacres de Ituango Vs. Colômbia (de 1º de julho de 2006), Goiburú e outros Vs. Paraguai (de 22 de setembro de 2006), de Almonacid Arellano e outros Vs. Chile (de 26 de setembro de 2006), e do Presídio Miguel Castro Castro Vs. Peru (de 25 de novembro de 2006), entre outras.
57. Ao longo dessa evolução jurisprudencial insisti, em sucessivos votos que dei a conhecer à Corte, na ocorrência de verdadeiros crimes de Estado com suas consequências jurídicas. Há pouco tempo, em meu Voto Fundamentado no Caso Presídio Miguel Castro Castro (de 25 de novembro de 2006), nesse mesmo período ordinário de sessões da Corte, me permiti chamar a atenção para a recorrência do crime de Estado e lembrar o pensamento jurídico esquecido a esse respeito (pars. 40 e 51). E acrescentei que a concepção do crime de Estado
"implica o próprio 'desenvolvimento progressivo' do Direito Internacional. Pressupõe a existência de direitos anteriores e superiores ao Estado, cuja violação, em detrimento de seres humanos, é particularmente grave e danosa ao próprio sistema jurídico internacional. Dota esse último de valores universais, ao coibir essas violações graves e danosas, e ao buscar assegurar a ordre juridique internacional.
Também dá expressão à crença de que determinados comportamentos – que constituem uma política estatal ou dela fazem parte – são inadmissíveis e geram a responsabilidade internacional agravada do Estado, com suas consequências jurídicas. Indica o caminho a percorrer para a construção de uma comunidade internacional organizada, do novo jus gentium do século XXI, do Direito Internacional para a humanidade". (...)
O crime de Estado acarreta efetivamente consequências jurídicas – como não poderia deixar de ser –, com influência direta nas reparações devidas às vítimas e seus familiares. Uma das consequências consiste nos "danos punitivos" lato sensu, concebidos estes, além da acepção puramente pecuniária a eles atribuída inadequadamente (em certas jurisdições nacionais), como determinadas obrigações de reparação que os Estados responsáveis por atos ou práticas criminosas devem assumir, obrigações estas que podem configurar uma resposta ou reação apropriada do ordenamento jurídico contra o crime de Estado.
Trata-se de obrigações de fazer. E, entre essas, figura a obrigação de identificar, julgar e punir os que cometam os crimes de Estado, que, por seus atos (ou omissões), incorreram em responsabilidade penal internacional, além de comprometer a responsabilidade internacional de seu Estado, em nome do qual agiram (ou se omitiram), na execução de uma política criminosa de Estado. Não se trata de atos (ou omissões) puramente individuais, mas de uma criminalidade organizada pelo próprio Estado. Torna-se, pois, necessário, levar em conta, conjuntamente, a responsabilidade penal internacional dos indivíduos envolvidos bem como a responsabilidade internacional do Estado, essencialmente complementares; ao crime de Estado corresponde a responsabilidade internacional agravada do Estado em questão" (pars. 52 e 53 e 55 a 56).
58. Em casos como o presente, em que o aparato do poder estatal foi indevidamente utilizado para cometer crimes de Estado (numa chocante distorção dos fins do Estado), constituindo violações inadmissíveis do jus cogens, e para depois acobertar esses crimes e manter seus agentes, que os cometeram, na impunidade, e os familiares das vítimas (também vitimados) na mais completa desolação e desespero – em casos como o de La Cantuta e de Barrios Altos, em que os crimes contra os direitos humanos foram cometidos no âmbito de uma comprovada prática criminosa do Estado –, as pacientes reconstituição e determinação dos fatos por esta Corte constituem, elas próprias, uma das formas de oferecer a satisfação – como forma de reparação – devida aos familiares sobreviventes das vítimas (que também são vítimas), e de prestar homenagem à memória das vítimas falecidas.
59. O jus cogens resiste aos crimes de Estado, e a eles impõe sanções, em razão do pronto comprometimento da responsabilidade internacional agravada do Estado. Como consequência desses crimes, as reparações devidas assumem a forma de diferentes obrigações de fazer, incluindo a investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelos crimes de Estado que cometeram (por ação ou omissão). O Direito não deixa de existir pela violação de suas normas, como pretendem insinuar os "realistas" degenerados por sua iniludível e patética idolatria ao poder estabelecido. Muito ao contrário, o direito imperativo (jus cogens) reage imediatamente a essas violações e impõe sanções.
60. Durante anos, no seio desta Corte, insisti na necessidade do reconhecimento e da identificação do jus cogens, e elaborei, em numerosos votos (no exercício das funções tanto contenciosa quanto consultiva do Tribunal), a construção doutrinal da aplicação do conteúdo material do jus cogens e das respectivas obrigações erga omnes de proteção, em suas dimensões tanto horizontal (vis-à-vis a comunidade internacional como um todo) como vertical (abrangendo as relações do indivíduo tanto com o poder público como com entidades não estatais ou outros indivíduos). Com isso, evoluiu e expandiu-se a própria noção de "vítima" de acordo com a Convenção Americana, ampliaram-se tanto os parâmetros da proteção devida aos justiciáveis como o círculo de pessoas protegidas.
61. Sinto-me gratificado por ter a Corte endossado minha argumentação, que hoje é um acquis, uma conquista de sua jurisprudence constante a esse respeito. Agora que expira meu tempo como Juiz Titular desta Corte, que assumiu uma posição de vanguarda entre os tribunais internacionais contemporâneos nessa matéria em particular, sinto-me, pois, inteiramente livre para ressaltar que este é um avanço que não permite retrocessos. Permito-me insistir (pois muito brevemente, em 1º janeiro de 2007, chegará o tempo de calar-me em minhas atuais funções) em que esta Corte não pode permitir-se frear ou retroceder sua própria jurisprudência em matéria de direito imperativo (jus cogens) no presente domínio de proteção da pessoa humana, em matéria de direito tanto substantivo como processual.
62. Com a presente Sentença da Corte no Caso La Cantuta, encerra-se um ciclo histórico de distribuição de justiça por parte desta Corte, que revelou que o primado do Direito se afirma ainda nas circunstâncias mais adversas para os titulares dos direitos humanos – a pessoa humana, sujeito do Direito Internacional, ainda que em estado de completa desproteção –, como se revelou, por exemplo, nos casos resolvidos por esta Corte ocorridos durante o regime Fujimori (Casos Barrios Altos e La Cantuta, entre outros), o regime Pinochet (Caso Almonacid) e o regime Stroessner (Caso Goiburú e outros) no âmbito da sinistra "Operação Condor". De minha parte, encerro com nostalgia esse período para mim inesquecível de serviços prestados e de profunda realização pessoal como Juiz Titular desta Corte, que não poderia ser mais gratificante, no processo de aprendizagem interminável que proporciona a busca – frente a todo tipo de adversidade– da realização do direito à verdade e à justiça bem como a busca sem fim do sentido da vida, da existência humana.

Antônio Augusto Cançado Trindade

Juiz
Pablo Saavedra Alessandri

Secretário


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