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poemas que o homenageavam e recuperavam a proposta de formação de
novos guerrilheiros, de homens novos que, a seu exemplo, se
sacrificariam pela continuidade da luta revolucionária latino-americanista.
A imensa profusão de obras dedicadas ao Che nos levou a selecionar
algumas que julgamos conter uma amostra das representações,
simbologias e imaginários mais freqüentes nesse conjunto (5). Vale
destacar que boa parte das canções ao Che nasceram como poemas
musicados, o que nos leva a atentar para o dado de que, nesses casos, as
melodias procuravam adaptar-se à forma poética declamatória (uma vez
que os poemas ao Che foram em sua maioria escritos para serem lidos
publicamente). Um exemplo é o poema “Che Comandante”, musicado
posteriormente e feito por Nicolás Guillén a pedido de Haydée
Santamaría, diretora da Casa de las Américas, e lido em 18/10/1967, no
ato público que se celebrou na Praça da Revolução, em Cuba, após a
notícia da morte do guerrilheiro (6).
Dentre as músicas que inventariamos, observamos que são freqüentes as
letras que, sequencialmente, noticiam ou reconhem a morte de Che,
apresentam o profundo pesar pelo ocorrido, reverenciam os feitos e
qualidades do guerrilheiro, e finalizam com a negação da sua morte, dada
a certeza de que, em se tratando de um mártir, a glória e a generosidade
transcendem a mortalidade. Em outros casos, Che e seu assassinato são
pretextos para a exaltação da América Latina e o lamento pelas agruras e
padecimentos de seus povos, personificados no herói a ser vingado.
Verificamos, assim, representações que mitificam Che Guevara através de
associações diversas, com forte carga simbólica. Uma delas, bem
frequente, é a do herói travestido de metáforas de “luz”. Essa imagem
redentora corrobora para a alusão à sua sabedoria, o caráter sagrado e
solar de sua figura e sua eternidade. Nas canções, a luz de Che ora dele
emana diretamente (através do olhar, da estrela, do sorriso, do
pensamento [7] ou do disparo de sua metralhadora [8]), ora é fenômeno
produzido por sua própria presença ou existência (9). Em alguns desses
casos, celebra-se o poder difusor e contagiante dessa luz, que
profeticamente também emanará daqueles que conseguirão manter sua
luta (10).
A mitificação de Che como homem novo se dá através da comparação a
mártires consagrados como Bolívar (11) ou Martí (12), ou a heróis como
seu contemporâneo Fidel Castro (13). Também há canções, sem citações
ou referências, diretamente celebram Guevara como modelo a ser
seguido (14). Dentre essas, algumas explicam meticulosamente a
constituição perfeita do homem novo a partir da descrição do herói (15),
enquanto outras proclamam a existência de muitos homens novos na
sociedade atual, que serão seus fiéis seguidores (16).
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Muito interessantes são as canções, principalmente sul -americanas, que
associam o heroísmo de Che Guevara a identidades regionais, caso
daquelas nas quais abundam representações andinas (17). Certo
deslocamento da própria história de vida do guerrilheiro, em letras que
enfatizam sua ligação com os pampas (18), a identidade de gaúcho (19)
ou a causa indígena (20) revelam o quanto sua imagem serviu à uma
grande diversidade de “causas” político-ideológicas, nas quais se apelava
à reação armada como saída libertadora.
O imaginário religioso que acompanha a sacralização do mito (a despeito
do marxismo encampado em vida) também possui sua diversidade. Na
maior parte das letras, a história de Che-mártir vem reforçada por
associações a passagens bíblicas, como o episódio da traição (21) ou o
sofrimento de Cristo durante a crucificação (22). Comparativamente, a
descrição de Che como cristão, generoso, solidário, sem vaidade alguma
(23), nos remete ao imaginário católico também latente na mitificação do
líder independentista José Martí como “apóstolo”.
Por outro lado, principalmente em Cuba, há canções mais afinadas com os
preceitos do marxismo-leninismo que procuram minimizar a carga
religiosa que envolveu a quase “canonização” de Guevara (24) e reforçar
seu papel de herói destemido. Nesse sentido, muitas canções cubanas
anunciam que a morte do guerrilheiro inspira o acirramento da luta, a
vingança por seu assassinato (25), e destacam os termos “comandante” e
“guerrilheiro heróico”, que enfatizam a conotação bélica, apolínea.
Nas propostas de continuidade da luta, identificamos sentidos ideológicos
diversos, relacionados às diferentes orientações políticas das
organizações de esquerda. Assim, tanto há a atitude, predominante na
época, de se cantar a morte do Che proclamando-se “o dia que chegou” e
a urgência do engajamento imediato de todos na luta (26); como há a
ênfase na intenção de se anunciar “o dia que virá”, tomando a morte de
Che como prenúncio de uma luta futura, para a qual todos devem se
preparar (27).
Musicalmente, percebemos que consagrou-se como importante
referência a canção “Hasta Siempre”, de Carlos Puebla, cuja forma
estética facilitava a imediata alusão à Cuba. Nesse sentido, muitas das
homenagens ao Che sutilmente a recriam ou apresentam um “colorido
cubano” através da incorporação, nos arranjos, de percussão com claves,
guiro, e bongôs. Tal “colorido” é perceptível na canção “Soy loco por ti,
América”, de Gilberto Gil e Capinam, concebida como uma rumba
abrasileirada, algo pop, que constrói uma representação alegórica de Che.
Sem mencionar o nome do guerrilheiro (28), a letra homenageia aquele
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