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que tem por nome, “povo”, fazendo alusão ao latino-americanismo e a
Martí, através de uma belíssima construção poética, que canta uma morte
heróica avessa àquela experimentada por Che: romântica,
cinematográfica, nos braços de uma idealizada “guerilheira-camponesa-
manequim”. Nessa e em outras canções esteticamente ousadas, as
representações ganham contornos modernos, midiáticos, mais
consonantes com as utopias e os hábitos da juventude identificada ao
universo do protesto hippie e tropicalista (29).
Os ritmos dançantes, algo psicodélicos, as fusões sonoras e
experimentalismo nas canções, entretanto, não chegam a ser maioria.
Predominam os hinos, marchas e canções estróficas de melodias simples,
repetitivas, em tom de lamento, que apresentam, de acordo com a
procedência de seus compositores e o público a que se destinam,
referências Idiossincráticas, sonoridades de “cor local”. Assim, temos
kenas, charango, bumbo e flautas nas canções de apelo andino (30),
harpas naquelas concebidas ao modo de guarânias e guitarra elétrica,
metais e sintetizador nas produzidas pelos tropicalistas ou pelo cubano
Grupo de Experimentación Sonora.
Para além do formato “voz e violão”, ou dos arranjos que valorizam a
interpretação coral, temos algumas canções muito solenes, épicas, nas
quais os ritmos marciais, a empostação dramática e as pesadas
orquestrações (31) têm papel fundamental na constituição de uma
“mensagem”. O volume sonoro, a intensidade crescente no
desenvolvimento da obra e o final apoteótico incitam a catarse de público
e intérprete, reação que exorcizava certas desesperanças, naquele
contexto. Em relação às performances, não faltam declamações no início
ou ao longo de diversas canções (32) , assim como a presença de coro
masculino no refrão, características que reiteram nossas conStatações
iniciais, nas quais destacávamos o peso conferido à letra .
De um modo geral, através desse breve inventário é possível perceber a
enorme força da sacralização de Che Guevara nas canções, a incidência do
imaginário cristão e a considerável presença de regionalismos que
revelam, por detrás da utopia da unidade latino-americana, a necessidade
de que a identificação se processe através de representações (musicais,
poéticas, ideológicas) reconhecíveis pelo público em questão.
Percebemos também que a associação Che-revolução cubana é apenas
uma das sugeridas pelas canções, que elevam o guerrilheiro a uma
espécie de “mártir de todas as lutas” e/ou herói da resistência.
Da superposição das canções que evocam Che resulta um mito impreciso:
índio, caribenho e gaúcho, generoso e implacável, imbatível e sofredor,
iluminado pelo sol , por chuvas de estrelas ou disparos de metralhadoras
que, entretanto, facilmente se molda aos rostos da América Latina e às
divergentes opções das esquerdas, nos duros anos sessenta e setenta.
Essa versatilidade intensificou-se com o passar dos anos, derivando na
massificação de sua famosa foto e no esvaziamento do sentido ideológico
através das inesgotáveis apropriações do consumo. Diferentemente do
uso da imagem, ainda muito reiterada, poucas canções, entretanto,
cantam hoje Che Guevara. Esse dado talvez nos revele que o fenômeno
coletivo desencadeado por sua morte, a própria urgência de se cantar o
heroísmo ou o martírio, têm uma historicidade que foi “fotografada”
musicalmente e que, nesse sentido, é irrepetível. Ou, ainda, esse dado
talvez atualize de forma silenciosa a confissão de Pablo Milanés, nesses
tempos de poucas utopias: “que puedo yo cantarte, comandante?”.
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Notas
1. Em dezembro de 1963, Che Guevara já defendia a formação do homem
novo em “El socialismo y el hombre em Cuba” (que vem a ser publicado
em 1965), enfatizando o compromisso do artista com a educação política
das massas) CHE GUEVARA. Obras 1957-1967. Casa de las Américas, 1970,
tomo II, pp. 367-384.
2. "Entrevista a Silvio Rodríguez". Cuba Internacional, La Habana,
enero/1995 Apud GUTIERREZ, F. Silvio Rodríguez, El elegido. Cali: Editorial
FAID, 1998. p.49.
3. Wagner Pereira comparou o sentido desse termo na Alemanha nazista
e nos EUA sob o governo de Roosevelt, definindo-o, no primeiro caso,
como um modelo que preconizava o heroísmo ariano, a abdicação da
individualidade, o sacrifício pela pátria e o auto-controle, Enquanto, em
sua versão norte-americana, conclamava a defesa dos ideais
democráticos, à pureza instintiva do homem do campo, a determinação e
otimismo. PEREIRA, W. P. Guerra das Imagens: cinema e política nos
governo de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). Depto. de
História – FFLCH-USP, Dissertação de mestrado, 2003. pp. 112, 142- 144,
159-161.
4. La Política Cultural de Cuba. 1983. La Habana: Ministerio de Cultura, pp.
15-16.
5. Selecionamos duas coletâneas: o Cd composto por 14 canções,
intitulado El Che Vive (1967-1997), do Studio de la Bastille, organizada por
Egon Kragel em Paris (1997), e o tríptico lançado em 2000 por
Agadu/Abraxas/Brecha composta por três Cds: Número 1: Che; número 2:
Hasta Siempre e número três: Cantarte Comandante, compostos por
canções e trechos de discursos de Che Guevara. Além disso, consideramos
algumas canções diversas, como “Soy loco por tí, América”. Ver
referências das canções ao final do texto.
6. Esse poema foi publicado na primeira página do Granma em
19/10/1967, segundo seu autor. Guillén é autor de outros dois conhecidos
poemas em homenagem a Che Guevara: “Guitarra do luto maior” e
“Leitura de Domingo”. O primeiro ganhou duas versões musicais: uma do
compositor espanhol Paco Ibañez e outra, posterior, do musicólogo e
compositor cubano Harold Gramatges. GUILLÉN, N. (trad. Emir Sader)
Páginas cubanas. 1985. São Paulo: Brasiliense.p. 145.
7. Imagens presentes em “Hasta Siempre”, de Carlos Puebla.
8. Em “Una canción necesaria”, de Vicente Feliú , se menciona as
“metralladoras doradas desde ti”.
9. Como nas canções “Son los sueños todavía”, de Santiago Feliú, em que
Che é comparado a uma “estrella ardiente”, em “Hasta Siempre”, de
Carlos Puebla, na qual se reitera a “clara presencia” de Che ou em “Su
nombre ardió como um pajar” , de Patricio Manns, na qual o título já faz
alusão ao fulgor do nome do guerrilheiro, cujo “rayo relumbró”.
10. Observamos isso em “Siembra tu luz”, de Miguel-Angel Filippini , e em
“Alma morena (el sueño de Che)”, do mesmo compositor, na qual se
menciona “la llama dispuesta a contestar”. Também na “Canción al
Guerrillero Heroico”, interpretada por Elena Burke, verificamos a idéia da
luz na passagem “hay una bala de sol para la oscura mentira”.
11. “Zamba del Che”, de Rubén Ortiz.
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